O mundo já foi um lugar encantado. Para gerações e gerações de antepassados nossos a realidade não era apenas aquilo que se via. Era muito mais do que isso. Era aquilo que se via e aquilo que se não via. Tudo estava, de uma forma ou de outra, cheio de sentidos e figuras espirituais. Vivia-se e convivia-se de forma espontânea com esse mundo imaterial. Tudo era espiritual. Tudo estava cheio de espíritos, presenças ora benfazejas ora temíveis. Os segredos da natureza explicavam-se menos com a mecânica dos seus processos físicos do que com acção desse mundo metafísico. Neste quadro tudo podia acontecer e, por isso, o mundo era, como na imaginação das crianças, um lugar encantado.
Esta não era, contudo, uma situação tão idílica quanto à primeira vista possa parecer. Pelo contrário, a submissão de tudo ao extraordinário tornava a vida imprevisível e, pior, tornava quase impossível alterar o curso da própria história. Desprovida de uma ordem racional perceptível, a realidade achava-se assim sujeita a toda a sorte de arbitrariedades desse mundo espiritual. Os humores dos deuses, tão inconstantes quanto os nossos, tudo determinavam de forma discricionária. Um qualquer gesto nosso poderia ter consequências diametralmente opostas, dependendo da reacção desses seres espirituais. A confiança no futuro era assim frágil e a liberdade quase impossível.
O cristianismo foi uma alavanca decisiva na alteração deste quadro mental. Com razão, vários autores notam que o «desencantamento do mundo» foi um dos seus maiores contributos à nossa civilização. A mundividência bíblica lançara bem fundo as raízes que viriam a tornar possível olhar o mundo como mundo, isto é, com autonomia face às realidades espirituais: coisa boa, querida pelo Criador, com leis próprias, nas quais se intuía a palavra estável de Deus. Como anota Max Weber, o «desencantamento do mundo» permitiu que se «eliminasse a magia como técnica de salvação». Ou como acrescenta Marcel Gauchet, o cristianismo mostrou ser a «religião da saída da religião», querendo com isto significar que a religião cristã permitiu que se saísse desse registo de submissão de tudo aos ditames caóticos de entidades celestes. Esta transformação do quadro religioso e mental esteve na base, entre outras coisas, do desenvolvimento da ciência ou da afirmação da liberdade.
Que hoje se olhe o mundo e a realidade de forma desencantada é um indicador do sucesso histórico do cristianismo, de como ele se tornou entre nós cultura, mesmo onde tal não se mostra evidente. Somos todos bastante bíblicos e cristãos quando olhamos o mundo assim: apenas como mundo, com autonomia própria e não apenas como palco de um incontrolável mundo espiritual. Todavia, de tão acostumados a habitar um mundo desencantado talvez tenhamos ido longe demais no desencantamento do nosso olhar e do nosso coração. Temos dificuldade em ver para além do visível, em nos encantamos com as coisas deste mundo, reconhecendo nelas a presença de Deus. Tornámo-nos, com frequência, demasiado analíticos do mundo e pouco contemplativos da vida. Tornámo-nos competentes na arte de decompor a realidade nas partes que a compõem, mas perdemos a noção do conjunto que ela forma. A necessidade quotidiana de encontrar a Deus na vida pede este olhar novamente encantado. Não julgo, porém, que tal se alcance voltando atrás na história, procurando reencantar o mundo como outrora. Não será despejando sobre ele uma patine religiosa de mistério que encontraremos aquilo que, de facto, precisamos. A via, parece-me, será outra: respeitar o «desencantamento do mundo», mas reencantar o nosso olhar. É aí – em nós – que se joga o encantamento da realidade. Já o profetizava Jesus: «Felizes os puros de coração, porque verão a Deus» (Mt 5, 8).