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Pe. Alexandre Palma
A maior invenção da humanidade
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Vivendo numa época pródiga em tantos progressos tecnológicos, talvez nos surpreenda verificar que a maior invenção da humanidade tem, afinal, 6000 anos. O diagnóstico (algo provocatório, reconheça-se) é do historiador Ben Wilson. Essa invenção é a cidade. E desde a sua origem mais remota, algures na antiga Mesopotâmia, ela não tem parado de evoluir.

A intuição de Wilson é de que tanto o nosso passado quanto o nosso futuro «estão unidos, para o bem ou para o mal, à cidade». De facto, precisamos de olhar de novo para as cidades que inventamos. Não apenas para satisfazer a nossa curiosidade acerca do seu passado, mas sobretudo para enfrentarmos com critério os desafios do nosso presente. 2007 marcou um momento charneira neste processo: pela primeira vez na história da humanidade a maioria da população mundial passou a viver em cidades. E este volume continua a crescer. A cada novo dia mais 200 000 pessoas passam a viver em cidades. Em 2050 o número de habitantes urbanos terá superado os dois terços da população mundial. Em síntese, os dados são inequívocos: o nosso mundo já é e será cada vez mais urbano.

A cidade sempre foi um lugar paradoxal, fascinante e terrível ao mesmo tempo. Nisso ela espelha algo da própria condição humana. E como nós, também ela é capaz de se adaptar a novas circunstâncias. Só isso explica a resiliência desta invenção humana. Ao longo da história, várias foram as vezes em que as cidades se tornaram o mais desumano dos lugares, em que se «cultivam vícios, se incubam doenças e se induzem patologias sociais». Ao mesmo tempo, elas têm sido os grandes contextos de geração de cultura, de criatividade económica e de transformação social. A extrema concentração de gente numa porção relativamente pequena de território (algo que definirá, em parte, o que seja uma cidade) pode ampliar isto mesmo: o que em nós há de melhor e de pior. Por isso, as cidades são ora lugares de atracção ora de repulsa, quando não tudo isso em simultâneo.

A cidade é, na sua essência, uma forma de construir relações. Julgo ser isto o decisivo. Ela foi sempre isto, em qualquer período ou geografia. Se a cidade é, como propõe Wilson, a maior invenção da humanidade, não será apenas por ser coisa antiga e grandiosa. Ficar-se por aí, parece-me, seria ainda não chegar ao fundo do que ela é e representa. A cidade é coisa grande porque é expressão do que somos: seres de relação. É por isso que o nosso futuro está tão intimamente associado ao futuro das nossas comunidades urbanas. As cidades traduzem em pedra a nossa vontade de encontro. Elas desenham com ruas a malha das nossas relações. São, pois, laboratórios do melhor que a cooperação humana é capaz de criar. São também o seu inverso, cenários do potencial desumanizador que existe em relações desequilibradas e injustas. As nossas cidades serão uma coisa ou outra dependendo da forma como as construirmos e habitarmos.

Nada disto fica à margem do cristianismo. E não é só porque o Evangelho e o seu testemunho tiveram na cidade, desde a primeira hora, o seu palco. De facto, a inexorável urbanização das nossas sociedades torna claro que o futuro da evangelização voltará a passar, à semelhança do que ocorreu no passado, de forma muito decisiva pela cidade. Para além disso, isto é assunto para Igreja também porque tudo quanto é verdadeiramente humano é campo para a sua acção. O cristianismo tem de ter uma tradução social. O devir da cidade não é excepção. Mas existe ainda uma outra razão para que as questões da cidade sejam também questões para os cristãos. É que vivemos num tempo em que o próprio cristianismo se redefine como comunidade, ou seja, como rede de relações. Dito de outro modo, a Igreja redescobre-se hoje como cidade. Da forma como vivermos esta sua peculiar dimensão urbana dependerá muito do futuro da presença cristã neste mundo. E também ela é uma grande invenção, neste caso de Deus e da nossa cooperação com Ele.