Entrevistas |
Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo
"Não podemos anunciar a Palavra de Deus como uma rotina"
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O Cardeal-Patriarca de Lisboa considera a rotina “uma ameaça muito grande à Igreja” e alerta para o perigo do individualismo. Numa grande entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE por ocasião do encerramento do Jubileu Sacerdotal, D. José Policarpo testemunha a sua história vocacional e sublinha que “a força da Igreja é ser uma comunidade crente”.


O Senhor Patriarca celebrou durante este ano o seu jubileu sacerdotal. São 50 anos de entrega a Cristo e à sua Igreja. Recorda-se da forma como conheceu Jesus Cristo?

Estávamos nos anos 40, num contexto sociológico e até teológico de Igreja pré-Concílio Vaticano II, em que a primeira educação cristã era fundamentalmente garantida pela família. Eu sou filho de uma família cristã, muito piedosa, de nove irmãos. Lembro-me que tive uma catequese preparatória para a Primeira Comunhão, dada por uma senhora que era empregada doméstica. Só na semana antes da Primeira Comunhão é que o prior, padre José Augusto da Costa, se encontrou connosco diariamente, para um ‘interrogatório’ sobre a doutrina. Nessa altura, o catecismo que nós seguíamos era o chamado Catecismo de São Pio X, que era muito ‘pergunta/resposta’. Portanto, nós aprendíamos aquelas respostas de cor e algumas eu ainda as sei hoje!

Actualmente, o suscitar de vocações está muito mais ligado à caminhada comunitária que os jovens fazem; mas nessa altura a família era o grande alfobre de vocações. Eu venho de uma família numerosa, onde uma vocação sacerdotal ou religiosa não ‘prejudicava’ os projectos da família. Hoje, sinto que a primeira dificuldade que os rapazes têm de vencer é a família… há muitos filhos únicos ou famílias com apenas dois filhos.

É neste contexto que surge a minha vocação. Lembro que a primeira vez que eu pensei nisso – tenho-o muito presente na minha memória – foi no dia do meu Crisma, que coincidiu mais ou menos com a minha Primeira Comunhão. Nessa altura, os Bispos iam às paróquias de cinco em cinco anos. Não me lembro porquê, não sei se o senhor Bispo falou disso na homilia, mas a recordação mais antiga que eu tenho do desejo de ir para o seminário é o dia do meu Crisma. E nessa altura comecei a falar nisso. Senti que para os meus pais, a minha vocação era algo que lhes dizia muito, apesar de terem sido sempre muito discretos.

 

Sentiu ‘medo’, perante essas primeiras inquietações?

Repare, o seminário também tinha para nós, rapazes da aldeia, a proposta de continuar os estudos! Na minha aldeia, Alvorninha, se eu quisesse continuar os estudos depois da instrução primária tinha que ir para Leiria, porque só havia liceus na sede dos distritos. Portanto, o Seminário Menor era uma alternativa. Mas não foi por isso que eu fui para o seminário!

Esta foi a minha génese vocacional. Sempre apoiada pelo meu prior de então. Um santo sacerdote, muito amigo lá de casa, que era para mim uma inspiração, um modelo. Ele nunca me disse nada, mas sei que ficou muito contente quando soube que eu queria ir para o seminário.

 

Que importância teve o tempo de seminário na sua vida de sacerdote?

Eu fiz todo o percurso de seminário. Foi um tempo felicíssimo! Talvez porque eu me identificava com o seminário, talvez por ser bom aluno, foi um tempo extraordinariamente gratificante para mim! Com grandes amizades, grande camaradagem. Fiquei com uma admiração muito grande por aqueles sacerdotes que eram os nossos educadores. Pessoalmente, não tenho nenhum elemento negativo a apontar. Foi um período muito agradável! Em especial no Seminário de Almada, que era um seminário extraordinariamente simpático. Todos nós ficávamos com imensas saudades desse seminário! Desde logo porque estava num sítio muito bonito, mas o ambiente que se tinha conseguido ali era realmente um ambiente muito simpático, com actividades culturais, desportivas… Lembro-me, por exemplo, que tive dois cargos no Seminário de Almada: um deles era ser o encarregado da loja onde a rapaziada comprava as coisas; e depois fui encarregado do laboratório. Tinha a chave e ia para o laboratório sempre que quisesse! Uma vez ia lá ficando, porque me pus a fazer uma experiência por minha conta e risco e apanhei um choque enorme (risos)!

 

É no seminário que os jovens começam a amadurecer o coração de Pastor…

O Seminário Menor é uma longa caminhada! É um período não de preparação imediata para o sacerdócio, mas de maturação daquilo que depois a Santa Sé chamou um dia, num documento feliz, os “germes de uma vocação”. Portanto, a própria vocação amadurece durante esse período com a aprendizagem da fé, com a cultura, mas sobretudo com a aprendizagem da fé, com uma identificação com o modelo sacerdotal. Mas aí o jovem passa por todas as fases de dúvidas, de crises. Lembro-me que houve uma altura – já não sei que idade tinha mas foi quando comecei a descobrir a Filosofia e a pensar pela minha cabeça – que passei por um período de muitas dúvidas de fé. Li, meditei, reflecti, discuti. Tudo isso faz parte de uma caminhada!

 

O Senhor Patriarca foi ordenado a 15 de Agosto de 1961, na Sé de Lisboa. Tinha então 25 anos. O que mais recorda desse dia?

Recordo que foi uma celebração muito longa (risos)! Nessa altura, todos os ministérios eram dados nessa celebração: começava na ‘prima tonsura’ [que era o primeiro grau de Ordem no clero] e acabava no presbiterado! Foi uma celebração que começou talvez pelas 9 horas da manhã e acabou ao meio-dia e meia ou uma da tarde! Fui ordenado ainda segundo o rito antigo e recordo-me que foi uma celebração comovente e marcante. O Cardeal Cerejeira presidia às celebrações com grande dignidade!

 

Considera ser esse o ‘dia principal’ da sua vida? O dia em que se entregou totalmente nas mãos de Cristo…

Certamente é um dia marcante, mas considero que na minha vida tenho vários ‘dias principais’: o dia em que eu nasci; depois o dia em que fui baptizado – um dia que eu sempre valorizei muito, até porque foi no dia de São José [19 de Março]; o dia do meu Crisma, uma data que eu valorizei pouco a pouco, à medida que o consciencializei; o dia da ordenação é também marcante, mas, com sinceridade, talvez me tenha marcado mais o dia da ordenação episcopal. A ordenação presbiteral era o fim de um percurso. Tinha o entusiasmo de passar por uma fase nova, que era ter uma nomeação como sacerdote e passar a presidir à Eucaristia. Mas não há dúvida nenhuma que todas estas são etapas significativas!

 

Hoje, passados 50 anos do dia da ordenação, consegue visualizar os momentos mais significativos do seu ministério?

Todos! Há um aspecto que para mim foi marcante e que eu consegui manter, graças a Deus, durante toda a minha vida: eu não era padre para fazer o que gostava; era chamado a gostar daquilo que me pediam, daquilo que me mandavam. E são várias as histórias que o comprovam. Quando decidi ser padre tinha um ideal, ou seja, o padre que eu gostava de ser estava na minha cabeça, um pouco na imitação do meu velho prior da aldeia: queria ser prior, trabalhar com o povo, mas isso foi algo que nunca me aconteceu (risos)! Outro episódio aconteceu com o Cardeal Cerejeira. Uns meses antes de eu acabar o curso no Seminário dos Olivais, o Cardeal Cerejeira mandou-me chamar e disse-me: ‘É para te avisar que depois da tua ordenação quero que vás para Roma continuar os estudos. Preparas o teu passaporte e avisas a tua família’. Eu, claro, fiz tudo o que ele me mandou! Depois, no dia da ordenação, ainda na Sé, paramentados, o Cardeal com ar paternal disse que já tinha nomeação para alguns de nós e envia-me para Penafirme, sem nunca mais me ter dito nada. Fui para o Seminário de Penafirme, onde estive cinco anos e lembro-me que fiz uma grande reforma. Nós tínhamos 120 ou 130 alunos internos e fazia-me muita impressão termos doze padres, que faziam tudo. Nessa altura já se sentia falta de clero, pelo que entendi haver muitos leigos que podiam dar certas disciplinas, porventura melhor que nós, sacerdotes. Fiz um projecto para o Cardeal Cerejeira, que consistia em entregar as aulas mais científicas a leigos e reduzir aquele número de padres de doze para quatro ou cinco. Isto ia contra todas as noções de seminário que o Cardeal Cerejeira tinha, mas aceitou-o e até indicou algumas pessoas para eu convidar! No dia 13 de Agosto de 1966, apresentei-lhe o esquema definitivo e, à porta da sala, o Cardeal Cerejeira diz-me: ‘Que fique claro que só aceito esta reforma porque tu estás lá!’. Dois dias depois, a 15 de Agosto, houve ordenações e o almoço foi na Buraca. Nós estávamos lá no largo, à espera que o Senhor Cardeal chegasse, e quando ele chega aproxima-se de mim e pergunta-me: ‘Olha, estive a pensar melhor… tu não queres ir para Roma continuar os estudos?’. Bem, eu ia caindo das nuvens (risos)! Disse-lhe que estava inteiramente nas suas mãos e uns dias depois o Cardeal Cerejeira confirmou-me a ida para Roma!

Portanto, todas estas histórias servem para referir que eu percebi que não era padre para fazer o que gostava. Eu era chamado a gostar daquilo que me pediam, daquilo que me mandavam. E isso acompanhou-me toda a vida! Mudei de projecto muitas vezes, mas aprendi a gostar daquilo que a Igreja me pedia. Isto é algo importante para os jovens sacerdotes e também para os cristãos!

 

As comemorações do jubileu sacerdotal tiveram início a 19 de Março, com uma reflexão sobre o ministério sacerdotal do Senhor Patriarca no âmbito dos seminários e formação sacerdotal. De que forma a Igreja deve preparar os seus sacerdotes para este novo milénio?

A Igreja, a partir dos anos 60, teve uma reviravolta muito grande. O período antes do Concílio Vaticano II foi um período bonito, com a Acção Católica e a renovação da Igreja após o período difícil da República. Era uma Igreja viva, simplesmente não havia a compreensão da Igreja e da missão da Igreja, sobretudo na sua relação com o mundo que evoluiu. O discurso de João XXIII, em São Paulo Fora de Muros, no dia 25 de Janeiro de 1959, em que anunciou o Concílio, é um discurso impressionante. Ele tinha sido Núncio Apostólico na Turquia e quando regressou à Europa teve um choque. Não conhecia a Europa! Tinha sentido que o mundo tinha mudado e que a Igreja estava num mundo em mudança. Entretanto foi eleito Papa e a pergunta que tinha no coração era: o que é que a Igreja tem de mudar para ser anunciadora neste mundo? Ela não se podia fechar na sua tradição, na sua realidade, mas tinha que responder e estar em diálogo com o mundo! Essa é uma pergunta crucial e que marcou, digamos assim, essa etapa da história da Igreja e que eu vivi em ‘cheio’.

Por outro lado, a dimensão da comunidade sobre a dimensão individual. Eu fui formado num tempo em que a piedade e a fidelidade cristãs eram muito pessoais. As pessoas iam à Missa porque se queriam salvar. Na época, não foi fácil compreender que o que é importante é pertencer a um povo, o povo do Senhor. Essa é a predilecção primeira de Deus, que envia e que espera que ele seja, no meio do mundo, um testemunho. Tudo isto são hoje dados perfeitamente pacíficos, adquiridos na compreensão da Igreja, mas naquela altura foram revolucionários!

Depois a reforma litúrgica. Eu sou do tempo em que durante a Missa as pessoas rezavam o terço, voltavam-se para os altares laterais a rezar aos santinhos e algumas conversavam. Portanto, houve uma reviravolta enorme da liturgia como expressão de uma assembleia celebrativa, adorante, de encontro com a Páscoa de Jesus.

Mas sobretudo, tem de se vencer a tentação do individualismo – que ainda não está totalmente feito – para a descoberta de que a força da Igreja é ela ser um povo, ser uma comunidade crente. É essa dimensão que depois torna tudo possível!

 

Durante as comemorações, foi publicado um livro – ‘Atraídos pelo Infinito’ – sobre o pensamento do Senhor Patriarca. Na apresentação da obra, referiu: “Cinquenta anos é um tempo curto demais para nos tirar a esperança e eu sinto que nós, Igreja, somos portadores de um tesouro indispensável para o futuro da humanidade”. De que forma a Igreja pode, hoje, anunciar este tesouro de que falava?

Esse é o grande desafio! É o tema da nova evangelização! Não se trata de coisas novas. A história gasta tudo e a Igreja, ao longo de dois mil anos, sofreu também o desgaste do tempo. A principal manifestação do desgaste do tempo é a rotina. Fazer as coisas que sempre se fizeram, sem lhe apanhar o mordente. A diferença que há entre a primeira celebração vivida com fé e as celebrações rotineiras é muito grande! De vez em quando, tem de haver um alerta, dinamismos internos da Igreja para voltar a descobrir, adaptado ao tempo que passa, o ardor e a frescura da Verdade inicial. Porque a Igreja é sempre a mesma ao longo dos séculos. Aquilo que nós temos para dar e para viver é perene, é a Páscoa de Jesus, a sua Palavra, o seu Evangelho, e isso vale tanto há dois mil anos como hoje. O que nós temos de vencer é esta rotina! A rotina de considerar a Palavra de Deus como um assunto de estudo, de considerar a liturgia como uma coisa que se espera que passe – e isto é tanto verdade para os padres como para os cristãos – e de voltar a fazer de cada momento desses, um momento com a densidade como se fosse a primeira vez ou como se fosse a última! O Concílio Vaticano II foi, no seu conjunto, uma grande ‘sacudidela’ para essa busca de uma autenticidade. Passaram 50 anos! Mesmo a mensagem do Concílio também já sofreu o desgaste do tempo e da história. Portanto, é importante que de vez em quando haja este chamar à autenticidade, que nunca é uma repetição, sendo a Igreja perene na sua mensagem, ela está muito entrosada com a vida do mundo, porque anuncia a homens concretos, não anuncia uma coisa teórica. A Igreja tem de escutar tanto a Palavra de Deus como os anseios dos homens. O Papa João Paulo II, nesse aspecto, foi um precursor, porque este tema da nova evangelização é certamente um apelo ao novo ardor! Penso que acabará por dar frutos e marcar o rosto da Igreja e o seu contributo para a sociedade global, no seu conjunto.

Um dos contributos que a Igreja dá à humanidade de hoje é suscitar a esperança! Mas cautela, é preciso não identificar a esperança com as expectativas humanas. A esperança cristã tem sempre uma raiz que é Nosso Senhor Jesus Cristo e a esperança de uma vida nova. A esperança não é desligável de um projecto de eternidade, realizado no tempo, mas um projecto de eternidade.

 

Costuma referir muitas vezes que “ser cristão não é fácil”. Um dos problemas da rotina de que falava é o sentimento da salvação adquirida, concorda?

A rotina é dos principais ‘vícios’ de todas as áreas da vida humana. Isso acontece em tudo: acontece na profissão, acontece no amor e acontece em nós, padres, no serviço sacerdotal. Como se vence a rotina? Fazendo as coisas como se fosse a primeira ou a última vez, com a verdade fundamental que nos mobilizou no início! Isso supõe um dinamismo e uma actividade espiritual interior contínua. A rotina é uma ameaça para tudo e no caso concreto da Igreja é uma ameaça muito grande! Não podemos anunciar a Palavra de Deus como uma rotina. A Palavra de Deus é, antes de mais, algo acutilante que tem uma verdade profunda e que toca o coração dos homens!

 

“O silêncio é uma lição que devemos aprender do magistério de D. José Policarpo”, disse António Araújo, consultor para os Assuntos Políticos da Casa Civil do Presidente da República, na sessão de apresentação da obra ‘Atraídos pelo Infinito’. Como é possível fazer hoje silêncio, neste mundo de ‘ruído’ em que todos ‘gritam’ e ninguém se escuta?

O silêncio hoje é uma fome, é uma necessidade fundamental. Este silêncio não é necessariamente ausência de ruído. A ausência de ruído ajuda ao silêncio. Para fazermos uma pedagogia de silêncio na nossa vida convém termos períodos em que estejamos mesmo em silêncio. O silêncio é a paz com Deus! O silêncio é o silêncio de Deus, que para nós é um mistério muito grande. É o participar, em cada momento, de uma outra dimensão da vida que não é aquela que eu consigo imediatamente. O silêncio está muito ligado ao anseio de profundidade. A superficialidade é sempre contra o silêncio.

É um facto que hoje vivemos numa sociedade de ‘balbúrdia’. Mas também podemos fugir dela! Eu costumo brincar com os meus sobrinhos e irmãos, quando começam a refilar com os programas de televisão, e digo-lhes sempre: ‘Mas a televisão tem um botão… vocês podem apagar!’. Hoje em dia, as pessoas são capazes de refilar mas não são capazes de ‘desligar o botão’. Mas isto é apenas uma pedagogia para o silêncio. Porque o silêncio é uma experiência de interioridade. A oração é sempre a participação no silêncio de Deus. A oração é certamente a expressão principal dessa pedagogia do silêncio, mas por vezes é um silêncio muito atravessado por mensagens. Não é um silêncio pacífico, porque Deus precisa de tempo para se nos manifestar e revelar.

 

No Dia da Igreja Diocesana, o Senhor Patriarca anunciou o pedido do Santo Padre para prolongar o seu ministério episcopal por mais dois anos e garantiu: “Serei até ao último minuto o Bispo que Deus deu à sua Igreja, para a conduzir nos caminhos da comunhão”. Preocupa-o a falta de comunhão que por vezes se manifesta no seio da Igreja?

Eu não falei necessariamente de um ponto de vista negativo. Construir a Igreja como experiência de comunhão é o grande desafio da pastoral em todos os tempos. No concreto da nossa Igreja de Lisboa, penso que estas celebrações do meu jubileu nos deram um testemunho muito vivo de comunhão. Isso deu-me muita alegria! Quando me anunciaram o programa das celebrações achei demais; mas quando percebi que era uma celebração da Igreja que eu amo e a quem dei a minha vida, tem-me dado muita alegria! Porque eu senti que foi ocasião para a Igreja de Lisboa manifestar a sua comunhão. Todos os acontecimentos têm sido muito gratificantes. Um pequenino sinal de que valeu a pena. Agora, nunca está tudo feito! Há sempre alguém que está de fora, alguém que não descobriu, alguém que descobriu e deixou arrefecer. Este é um caminho que só acaba no Céu! A Igreja é feita à imagem da Santíssima Trindade, onde todos encontramos a coisa mais preciosa da nossa vida por estarmos em relação de amor com Deus e com os outros, e não a partir de uma perspectiva individual.

 

Durante as comemorações, foi homenageado com um concerto pelo Coro e Orquestra Gulbenkian. A arte, a cultura e a beleza são expressões de nova evangelização?

São, não tenhamos dúvidas! A beleza faz parte da cultura, que engloba todas as expressões da beleza. A cultura é o espírito humano à procura da sua profundidade. Hoje há teorias que querem pôr isso em questão, mas não há dúvida nenhuma que no Homem, criado à imagem de Deus, há um universal humano comum a toda a humanidade. Mas para além desse universal humano comum, há uma variedade que vai quase de pessoa para pessoa. Uma riqueza enorme! E estarmos atentos a isso é uma maravilha!

A cultura, em princípio, respira esse universal humano e essa variedade de povos e de pessoas. A beleza é outra coisa. A beleza faz parte da cultura e é uma atitude contemplativa. A autêntica beleza é sempre experiência de uma dimensão transcendente. Sou muito sensível à beleza natural, porque ela tem a marca do Criador; mas sou particularmente sensível à beleza que saiu da síntese humana do artista. A beleza é sempre um anúncio! E um anúncio de que a realidade que vivemos é mais do que este imediato, dos problemas, das coisas…

 

A 15 de Agosto, aniversário da ordenação sacerdotal, presidiu nos Jerónimos a uma celebração com cerca de dois mil jovens da diocese que iam para a Jornada Mundial da Juventude, em Madrid. Que papel pode a juventude desempenhar na Igreja do século XXI?

A minha primeira questão é outra: que papel é que a Igreja tem na vida destes jovens? Nas Jornadas Diocesanas da Juventude tenho tido momentos muito belos e carregados de esperança! Os jovens que estavam nos Jerónimos, fui reencontrá-los no Arena, em Madrid, no dia do encontro dos 15 ou 16 mil jovens portugueses. De Lisboa estavam cerca de 2600, que não foram só por ir! Eu estive com eles, falei-lhes, fiz uma catequese e senti uma grande sintonia. Nesta massa juvenil que está hoje em sintonia com Jesus Cristo e com a Igreja, há duas características: há uma redescoberta do essencial cristão, mas numa linguagem nova! Os jovens não têm dificuldade em se abrir ao perene, em encontrar sintonia com aquilo que eu fui como jovem. Mas a linguagem é outra!

 

Mas o que espera do jovens?

A Igreja do futuro não sei se será minoritária se não será – analistas pessimistas dizem que a Igreja na Europa ficará reduzida a pequenos grupos, eu não sou tão pessimista como isso. Mas a Igreja do futuro será o que estes jovens forem! As famílias que eles constituírem. Os filhos que educarem. Se forem capazes de manter esta ‘chama’ que agora têm na juventude…

Penso que há um passo muito grande que esta juventude tem que dar, que é descobrir, não apenas a partir das leis da Igreja – que essas parece que estão perdendo, digamos assim, o ‘impacto’ – mas a partir da exigência do amor e da comunhão a Jesus Cristo, o que é viver a vida nova do cristão. Mas descobrir isso em toda a linha: na linha do trabalho, da alegria, do divertimento, do amor. Porque o cristão não é um homem igual aos outros todos, que é capaz de fazer uma festa. Não! O cristão tem, dia-a-dia, o desafio de viver cada coisa humana com uma dimensão nova! Esse é o grande desafio que os nossos jovens têm que fazer.

 

A 20 de Agosto, aniversário da Missa Nova, encontrou-se com familiares, conterrâneos e amigos em Alvorninha, sua terra natal, e recordou a primeira vez que presidiu à Eucaristia. Há 50 anos, esse foi o primeiro momento de uma longa caminhada de quem tem procurado na Eucaristia o verdadeiro rosto de Jesus?

Foi! E continua a ser! Isto tem a ver com aquilo que disse atrás: nós, sacerdotes, corremos o risco de entrar na rotina mesmo aí! Não acuso ninguém, mas penso nos sacerdotes da minha diocese, coitados, por vezes com quatro Missas seguidas… Uma vez aconteceu-me um episódio, quando ainda era Bispo Auxiliar de Lisboa e estava em visita pastoral a uma paróquia, em que o pároco, sem me consultar, fez um programa com cinco Missas no mesmo dia. Eu cumpri o programa mas ‘ralhei’ com ele. Primeiro, porque não está de acordo com as leis da Igreja – eu não tenho poder para celebrar cinco Missas num dia – e depois porque ninguém aguenta! Eu ainda brinquei com ele e disse-lhe que quando cheguei à última Missa já não tinha fé (risos)!

Nas necessidades actuais, e procurando responder aos desejos desta ou daquela aldeia, eu compreendo que os jovens sacerdotes andem a correr de um lado para outro. Mas é uma ameaça tremenda, porque uma coisa que, para mim, é fundamental na nossa presidência da Eucaristia, é que nós não estamos ali de qualquer maneira! Nós estamos ali, no lugar de Jesus, a presidir à celebração da sua Páscoa! Eu não posso celebrar a correr, a despachar. Isto não está adquirido desde o princípio e, como tal, é um desafio contínuo.

Portanto, desde a minha primeira Eucaristia, há 50 anos, até à que celebrei esta manhã, tem sido uma longa caminhada descobrir que este é um momento absolutamente decisivo de encontro com o Senhor e de encontro com a Igreja.

 

Encontrou-se no passado dia 9 de Outubro com as famílias da diocese. Perante os ataques constantes à família que a Igreja tem denunciado, como compreende uma verdadeira pastoral familiar?

A pastoral familiar, a meu ver, devia começar muito antes do casamento. A primeira descoberta que um jovem tem que fazer para perceber o casamento cristão – e isso percebe-o na sua caminhada de juventude, de catequese – é que uma coisa é a vida humana na sua capacidade natural e outra coisa é aquilo que eu sou chamado a ser com a graça de Deus. Nada na vida cristã é possível, nessa óptica, sem a força do Espírito Santo. Aquilo a que os teólogos na história chamaram a relação entre a natureza e a graça. A graça nunca é a anulação da natureza, mas é um desafio a viver cada expressão do ser homem ou ser mulher com a força do Espírito Santo, e, portanto, numa relação com Deus e numa relação sobrenatural com a vida. E isto ou se faz ou não se faz! Não basta uma pessoa chegar ao casamento e querer uma cerimónia religiosa somente porque é mais bonita, porque é tradição ou porque os avós ou a mãe ficavam muito tristes se assim não fosse.

Um segundo ponto da pastoral familiar é a preparação antes do casamento. Penso que a Igreja tem de ter um trabalho com namorados e com noivos, que já existe, mas que caiu na rotina. Às vezes é quase só o preenchimento de ‘coisas’ canónicas. Essa é uma ocasião privilegiada, até porque é um momento sob o ponto de vista humano muito bonito, cheio de encanto! Uma das causas – não é a única, porque há causas sociológicas – da fragilidade dos casamentos actuais é não ter percebido isto que estou a dizer. Quando acabou o encanto, o fervor do amor, da paixão, termina tudo… Não, não! O projecto é outro: é viver na caridade, no plano de Deus, com a força do Espírito Santo. É por isso que o casamento é um sacramento! Não é só uma cerimónia religiosa, é um sacramento! Ou seja, toda a expressão do casamento torna-se momento de graça, força e instrumento de graça divina. Quantos jovens que se casam na igreja vivem a sua vida matrimonial e têm consciência disso? Que quando se ama, quando se unem, quando partilham a vida, aquilo é um sacramento! É a realidade humana de que Deus se serve para o catapultar para uma perspectiva mais bela.

Uma terceira dimensão, que tem sido mais difícil mas que eu continuo a insistir nela, é o acompanhamento casal a casal. Quantas horas eu ‘gastei’ a falar com casais, às vezes até de madrugada! Hoje isso faz-se pouco… fazem-se reuniões, mas os sacerdotes não têm tempo e talvez tenham perdido este mordente e os casais também não procuram… Eu já fiz uma proposta para que houvesse uma inscrição dos casais e no acto do casamento religioso se perguntasse sempre se o casal quer entrar num dinamismo de mais intercâmbio. Nós, neste momento, casamo-los na igreja, presidimos à cerimónia e abandonamo-los…

 

O Concílio Vaticano II fala sobre o papel dos leigos na missão da Igreja. Quase 50 anos após esta reflexão, acredita que o apostolado laical já é totalmente aplicado na Igreja?

Apesar de tudo, é um dos aspectos que tem funcionado bem! É uma das heranças do Concílio Vaticano II. Embora eu seja do período da Acção Católica, hoje há uma consciência muito grande da dignidade do leigo e de ser membro da Igreja. Há uma consciência de missão, por exemplo, que dantes não havia. Antigamente, a missão era para os padres e para as freiras. Partir em missão era para um missionário que ia com o hábito. Hoje não! E são muitos os que partem em missão! Isto está ligado à consciência da Igreja povo de Deus e não de projecto individual. A Igreja povo do Senhor é o verdadeiro sujeito da missão, é o sujeito do amor de Cristo. Quem é enviado ao mundo é a Igreja. Não confundir depois a particularidade dos carismas, dos ministérios, da vocação de cada um com a missão da Igreja como um todo. Portanto, cada cristão que tenha consciência disso, sente-se tão responsável pela missão da Igreja e deve sentir-se tão chamado à santidade como eu me sinto como Bispo!

 

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Encerramento do Jubileu Sacerdotal do Cardeal-Patriarca

 

“Quisestes fazer coincidir o encerramento das celebrações do meu Jubileu com a Solenidade da Dedicação da nossa Catedral. Isso tocou-me profundamente pois em cinquenta anos de ministério sempre me senti profundamente ligado a esta Catedral, onde fui consagrado sacerdote.”

 

“Aqui fui associado ao sacerdócio apostólico, daqui fui enviado em missão, sentimento renovado e aprofundado em cada missão que recebia, até ao dia em que a ela fui reenviado para presidir, na plenitude do sacerdócio apostólico, a esta Igreja que precisa de se alimentar continuamente da Palavra, dos Sacramentos, para ser um Povo unido na caridade.”

 

“A Catedral sugere a unidade do presbitério, do Bispo com os presbíteros, que têm de espelhar na sua unidade de comunhão, a unidade que querem construir em toda a Igreja diocesana.”

 

“A Catedral é o lugar da evangelização e a fonte sacramental donde jorram, para toda a Diocese, rios de água viva. O Santo Padre Bento XVI, através do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, propõe a 12 Igrejas europeias, entre as quais a de Lisboa, uma experiência de Nova Evangelização a partir da Catedral, a realizar na Quaresma de 2012.”

 

“Nós aceitamos esse desafio e um programa está já em preparação. Sugere como concretizações: catequeses do Bispo na Catedral orientadas para públicos específicos; celebração do Sacramento da Penitência; celebração da Eucaristia; proclamação completa do Evangelho de Marcos; uma concretização da caridade, através da partilha cristã, comum a todas essas Igrejas.”

 

“Encerramos as celebrações do meu Jubileu Sacerdotal. Nos diversos momentos celebrativos, o presbitério, os diáconos, o Povo de Deus, ajudaram-me a sentir de novo a alegria do meu sacerdócio, a descobrir outra vez que a razão de ser dele é a Igreja e reconduziram-me ao amor por esta Catedral onde, há cinquenta anos, tudo começou.”

 

Excertos da Homilia na Solenidade da Dedicação da Sé Patriarcal
Encerramento do Jubileu Sacerdotal do Cardeal-Patriarca
Sé Patriarcal, 25 de Outubro de 2011 

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