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Hermínio Rico, sj
Há 40 anos e agora
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Faz por estes dias exactamente 40 anos que foi publicado um dos documentos mais ousados da Doutrina Social da Igreja. O seu nome oficial é Convenientes ex Universo, mas é conhecido habitualmente pelo nome do tema do terceiro Sínodo dos Bispos de que foi produto não mediado: “Sobre a justiça no mundo”. Vale a pena recordar-lhe o aniversário para não correr o risco de ir ficando cada vez mais esquecido.

A proclamação sinodal intensifica as posições da Igreja sobre o desenvolvimento avançadas pelas encíclicas dos anos 60, afirmando desassombradamente o carácter essencial da dimensão social da missão da Igreja que a Evangelii Nuntiandi irá, uns anos mais tarde, aprofundar: “A acção pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho”. E não tem medo de definir a exigência do desenvolvimento pelo conceito mais abrangente, e também, ao tempo, mais arriscado, de libertação: “A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que correm, que nos comprometamos com a libertação integral da pessoa, já desde agora, na sua existência terrena.”

Mas, mais do que o que diz ao mundo, é no modo como fala para a própria Igreja que o documento mostra uma coragem inusitada. “Se a Igreja deve dar um testemunho de justiça, ela reconhece que, seja quem for que deseje falar de justiça, deve ele próprio ser justo aos olhos dos outros. Convém, portanto, que examinemos os modos de agir, as posses e o estilo de vida que se verificam dentro da Igreja.” Sem rebuço, enumera a seguir aspectos concretos em que a Igreja precisa de crescer na coerência entre o que prega para fora e o que pratica dentro de si mesma.

O chamamento ao exame do estilo de vida está hoje novamente na ordem do dia. Há 40 anos, era um desafio para os cidadãos dos países ricos, em nome da sustentabilidade ambiental: “Aqueles que já são ricos estão obrigados a adoptar um estilo de vida menos materialista, menos dissipador, para evitar a destruição de um património que eles, por força de dever absoluto de justiça, estão obrigados a compartilhar com todos os demais membros do género humano.” Hoje, aquilo que os limites de sustentabilidade dos recursos do planeta já há muito exigiam, torna-se ainda mais urgente e concerne-nos a todos como sociedade, imposto pelos constrangimentos financeiros decorrentes dos excessos de consumo a crédito do passado recente.

Razões somadas, portanto, para rever o nosso estilo de vida, vivido ou ainda apenas sonhado. Um estilo de vida não é um mero resultante de decisões superficiais. Expressa-se em decisões, mas define-se a partir de hábitos e valores. Uma mudança de estilo de vida implica uma mudança de mentalidade, exige conversão não só de comportamentos, mas também de atitudes, pede uma nova maneira de pensar, sentir, valorar e fazer escolhas no que diz respeito ao consumo, à aquisição de bens e aos gastos em actividades de lazer. Mudar de estilo de vida configura uma autêntica conversão.

Por isso, a necessária mudança de estilo de vida não é uma simples contenção mais ou menos passageira, para, assim que possível, passado o aperto, poder regressar ao que era dantes. Tem que constituir uma mudança duradoura. Deste modo, é uma oportunidade para olhar para a vida que vivemos a partir de valores qualitativos e não meramente quantitativos (que estão sempre a exigir crescimento e alimentam-se da comparação competitiva). Um estilo de vida mais sustentável não tem que trazer diminuição da qualidade de vida. Até pode ser que as pressões para ajustar os níveis de consumo e de gastos obriguem a encontrar um estilo de vida mais respeitador dos recursos da natureza, adequado às disponibilidades financeiras reais e capaz de proporcionar uma fruição muito mais equilibrada das potencialidades da vida.

Precisamos de examinar o nosso estilo de vida. Há 40 anos que nos é pedido.