Entrevistas |
Manuela de Carvalho, teóloga e professora jubilada da UCP
“O inferno é não amar Deus”
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A Universidade Católica Portuguesa acolheu por estes dias as Jornadas Balthasarianas, para reflexão sobre o pensamento de Hans Urs von Balthasar (1905-1988), teólogo jesuíta suíço, nomeado cardeal pelo Papa João Paulo II e considerado um dos mais importantes teólogos do século XX. Manuela de Carvalho, teóloga e professora jubilada da UCP, reflecte sobre o tema deste ano, ‘Vida e Morte’, e aponta ao Jornal VOZ DA VERDADE que “não acreditar no purgatório é de certa maneira não acreditar na Igreja”.

 

O que são as Jornadas Balthasarianas?

Estas jornadas realizam-se uma vez por ano e são normalmente o fruto de um trabalho de seminário que um pequeno grupo faz durante o ano. Escolhemos um tema e vamo-lo estudando e debatendo entre nós. Desse debate saem depois estas jornadas onde tentamos pôr em linguagem acessível ao grande público, aquilo que no fundo são as grandes intuições balthsarianas. Os temas têm sido sempre escolhidos de acordo com algum critério. Por exemplo sobre a fé, sobre o testemunho da fé, a teologia da história... Este ano quisemos que fosse sobre assuntos de escatologia, dado que se ouvem muitos disparates a este respeito. As pessoas têm umas noções que estão completamente ultrapassadas desde os anos 60 mas que ainda mantêm. São as velhas explicações do que acontece depois da morte. Uma espécie de física da eternidade, em que se sabia muitas coisas. O que acontecia a cada pessoa, como era e como não era. E isso foi ultrapassado! Não se trata de ‘bisbilhotar’ o que vai acontecer depois da morte, mas trata-se de perceber o que é viver em Cristo.

 

E o que é viver em Cristo?

Este viver em Cristo dá-se na nossa vida histórica. E acreditamos, porque Ele ressuscitou e nos prometeu a vida eterna, que não termina na morte. Portanto, há uma unidade entre a história e aquilo que podemos chamar a meta-história, sempre na esperança do Reino futuro que Ele nos prometeu e que é o Reino eterno. Esta caminhada para o reino, podemos dizer que é a vida escatológica.

 

Quando começa essa vida?

Essa vida começa no Baptismo. Nós, no Baptismo, iniciamos uma vida de ressurreição porque morremos e ressuscitamos com Cristo no Baptismo. No Baptismo, começamos a ‘viver em Cristo’, como diz São Paulo. Depois, há um percurso, uma caminhada. Toda esta caminhada tem elementos que eu diria de Céu. O que é a Eucaristia senão já um Céu aberto! Na Eucaristia nós só não vemos a Deus face a face, mas penetramos e somos penetrados também pelo mistério da Santíssima Trindade. O que é todo este dinamismo do Baptismo, de confissão dos pecados senão uma purificação! Antigamente tínhamos a ideia de que o Céu estava ‘lá em cima’ e o inferno ‘lá em baixo’. O purgatório devia andar aí pelo meio. Depois havia umas labaredas no inferno e umas mais pequeninas no purgatório. E no Céu não havia nada disto! Havia lindos jardins, até com balouços. Portanto, as pessoas tinham também a noção das imagens. Mas estas coisas não se fazem com imagens, fazem-se com vida.

 

O teólogo Balthasar veio mudar esta concepção?

Sim, foi necessário reformular tudo isto e deve-se a Balthasar esta reformulação. Por volta dos anos 60, eles propôs que tudo o que dizia respeito aos ensinamentos do post-mortem fossem ‘fechados para balanço’; e se pensasse, estudasse e aprofundasse tema por tema. Portanto, vai ser à luz da morte e ressurreição de Cristo que Balthasar, aos poucos, vai reformulando a escatologia.

 

Pode explicar o que isso significa?

A escatologia diz respeito ao escathon que significa 'definitivo'. O que é definitivo? É a vida que Cristo introduziu na história com a sua morte e ressurreição. Ele é o escathon, o definitivo. N'Ele vamos caminhando de definitivo em definitivo. Toda a nossa vida tem uma dimensão escatológica porque todos nós caminhamos em Cristo. Caminhamos e acreditamos que a morte não termina a vida. Aliás, nós rezamos na liturgia que a vida não acaba, apenas se transforma. E nesta transformação sabemos que Cristo é o Senhor da história e da vida. Sabemos que n'Ele há um dinamismo de entrega ao Pai. Chamemos a isto Céu. Há um dinamismo purificador porque Ele nos vai purificando. Ele e a sua Igreja, porque não podemos separar Cristo da Igreja.

 

Esse dinamismo é o purgatório? Podemos acreditar no purgatório?

Não acreditar no purgatório é de certa maneira não acreditar na Igreja. Porque é fazer uma cristologia sem Igreja. O que é a mesma coisa que fazer uma Igreja sem Cristo. É fazer uma ‘jesulogia’ em que Cristo não é o Salvador. Porque o ser Salvador é rodear-se daqueles que Ele salva. E isto é o seu Corpo vivo. A isso nós chamamos Igreja. O que faz o seu Corpo vivo? Intercede pelos outros, faz o que Ele fez, dá a vida pelos outros. Os santos no Céu rezam por aqueles que cá estão. Um santo é aquele que tem a ânsia de chamar os outros a participarem da santidade, e isso é purificador. Aqueles que estão na história rezam por aqueles que ainda não estão purificados.

 

O que é a purificação?

É receber a ajuda daqueles que nos puxam para Deus. Com labaredas ou sem labaredas. Balthasar dizia que Deus é um fogo de amor. E esse fogo de amor é céu para quem o contempla. É juízo para quem Ele julga, é purificação ou purgatório para quem Ele quer purificar, e é inferno para quem o nega. Deus é que é o inferno para quem o nega. Porque não há nada mais horrível para alguém que não ama Deus, e que quer viver no mal, do que Deus existir. Portanto Deus é o inferno para quem o nega. Por isso Balthasar diz: e agora o que se deve fazer no meio de tudo isto? Esperar para todos a salvação! Temos a certeza de que se vão salvar? Não temos certeza de coisa nenhuma! Não temos certeza estatística! Não sabemos quantos santos há no Céu. Só sabemos aqueles que a Igreja canoniza por serem modelo, testemunho vivo de Cristo. De resto, não sabemos quantos há condenados. E aí a Igreja nunca declarou ninguém condenado. Nem Judas. É capaz de haver porque há muita gente que realmente faz muito mal. Mas quem são? Não sabemos se à última hora eles se convertem. O mal é que se quer saber muita coisa e isso é o contrário da esperança.

 

Que esperança é essa?

Esperar é entregar-se confiadamente a Deus. É um acto de abandono. É a força da fé que nos leva a abandonar-nos a Deus. Da fé e do amor. Portanto, o que sabemos é que Cristo morreu e ressuscitou por todos nós. Que Ele nos ama a todos. Que Ele é misericordioso, que a misericórdia é justiça. Porque uma misericórdia que não fosse justiça não era verdadeira misericórdia. E tudo isto está envolvido pelo grande amor de Deus. Por isso Balthasar pergunta: o que é que podemos esperar ou o que nos é lícito esperar? Ele foi muito censurado por dizer que Deus quer salvar todos. Alguns teólogos não entendem isto. E então achavam que ele dizia que o inferno estava ‘às moscas’! Para Balthasar, não esperar que todos se salvem é não saber amar. Porque basta que um não se salve, para não poder ficar descansado. Os santos no Céu intercedem por todos, e nós na terra devemos interceder e amar a todos, e não julgar ninguém, porque juiz é só o Senhor.

 

Então o inferno não é lugar de condenação?

Não amar é um inferno. Nós sabemos isso pela vida. Balthasar usa a expressão “viver encarquilhado”. O inferno é um encarquilhamento e nós, já na história, por vezes vivemos assim. Vivemos virados para nós, para o nosso umbigo, inquietos com tudo. Tudo nos incomoda. Não sabemos amar e não sabemos que amar é uma liberdade de coração que leva a dirigirmo-nos ao outro e olhá-lo com amor, como alguém que Deus ama.

 

Então porque vemos as representações figurativas do inferno como fogo?

Porque as pessoas acham que tudo tem de ser representado e então representam o inferno com o fogo, com um mafarrico. Este fogo é o do próprio amor, que a uns fará arder o coração de mais amor, a outros acaba por queimá-los no seu próprio egoísmo, no seu próprio mal. Quem ama verdadeiramente o fogo do amor divino resplandece nesse amor. Quem não ama arde nele. Por isso, a imagem do fogo é para dizer esta coisa simples.

 

O que é o paraíso? É a plenitude do amor?

O paraíso é uma plenitude do amor que espera ainda a plenitude final. Porque o paraíso ainda não é tudo. Nós esperamos o Reino que é aquilo a que chamamos teologicamente a 'parusia' ou o fim dos tempos. Não sabemos grandes coisas sobre isto, mas há esta intuição de que Cristo e os santos esperam pelos outros para o grande festejo do banquete final, onde Deus possa reinar sobre todos. É isso que nos faz ter uma esperança. O Céu é um grande dinamismo de amor; portanto aqueles que realmente vêem a Deus anseiam para que também os outros o vejam e por isso intercedem. O amor é por natureza dinâmico, regozija-se no dinamismo de continuar a amar e fazer amar.

 

Não podemos então afirmar que no momento do juízo final uns estarão no Céu e outros no inferno, concorda?

Dessa maneira não é conveniente, porque em relação à plenitude dos tempos nada sabemos porque nada foi revelado. São Paulo diz que 'isso nem o Filho sabe!' É uma surpresa, e em Deus a surpresa é das coisas mais bonitas. O que será a surpresa final? Não sei! E Balthasar também diz que não sabe, e é óptimo não saber porque se não, deixaria de ser surpresa. No que consistirá? A ver vamos! Mas o Céu não é ainda o terminus do caminho, mas é já uma plenitude. É o participar de uma plenitude que Deus é.

 

Em que lugar as pessoas se podem purificar?

Na Igreja! Onde é que as pessoas nascem para a fé? Na Igreja! Onde é que as pessoas contemplam Deus, ainda que não O vejam? Na Eucaristia. Portanto, o lugar teológico do purgatório, que alguns dizem que não existe, é a Igreja. É nesta inter-ajuda de amor que nós nos purificamos. O mistério da Confissão também é purgatório. Não tem labaredas, mas é o confiar no amor que nos vai purificar dos nossos defeitos, dos nossos pecados e nos vai fazer renascer para uma vida nova. Não acreditar nisto é não acreditar no dinamismo da própria Igreja que é purificadora.

 

Esta perspectiva apresentada por Balthasar é defendida pela Igreja?

Sim. Os melhores tratados de escatologia actuais vão nesta linha. Uma das pessoas que segue esta linha é o actual Papa.

 

O que significa o conceito de esperança cristã?

É o que nos leva a tudo isto. Porque a esperança é o grande dinamismo da fé que leva a que eu olhe todos com o amor e com o desejo de que eles participem do que é o bem de Deus.

 

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Balthasar na vida de Manuela de Carvalho

“Conheci pessoalmente Hans Urs von Balthasar, estive com ele na Suíça e também aqui em Portugal, por duas vezes. Ao longo dos anos, mantivemos correspondência. Aliás, ele foi o grande orientador da minha tese!

Gostaria de o definir como um santo. Penso que era realmente um homem bem-aventurado, que fez da inteligência uma escada para Deus. Ele escreveu por amor. Era um homem de disponibilidade de coração. Era um cristão!”

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