Artigos |
Guilherme d’Oliveira Martins
«O sentido da existência, hoje»
<<
1/
>>
Imagem

«Deus e o Sentido da Existência» de Anselmo Borges (Gradiva, 2011) é constituído por um conjunto de textos, escritos pelo autor em várias circunstâncias, arrumados de um modo coerente e pedagógico, segundo os seguintes capítulos: crentes e ateus - o elogio da pergunta; animalidade e humanidade; sociedade, ética e religião; Deus da religião e o Deus da filosofia; Deus e o sentido último; e o jogo da esperança do mundo. O tratamento dos temas a que há muito nos habituou é extremamente atraente, uma vez que procede a uma rica ligação entre a linguagem, a etimologia e a busca de um diálogo efetivo entre saberes, autores e diferentes horizontes culturais e espirituais. O livro é antecedido por um prefácio, da autoria de Lídia Jorge, que é uma apresentação do tema e do autor, a partir da necessidade de compreender que o diálogo entre a razão e a fé é fundamental na sociedade contemporânea como modo de superar as tentações do fanatismo, da irracionalidade, da fragmentação social e do triunfalismo absolutista. O vazio religioso e a indiferença têm tido, com efeito, os resultados contrários àquilo que alguns julgaram ser a tendência para a religião favorecer excessos e contrariar a crítica e a ciência. E a escritora vê em Anselmo Borges «uma mensagem integradora, fraterna, inclusiva, através da qual o texto convida os leitores a viverem acima da vida, acima daquela vida sem outro sentido que não seja seguir o instinto de se auto-satisfazer e possuir». A religião significa, de facto, etimologicamente, algo que não apenas é suscetível de ligação (religare), mas também de reponderação (relegere). E Lídia Jorge usa uma forma muito bela e significativa: «no estrito plano da vida íntima, este livro ajuda a compreender que nos questionemos, pela manhã, por que motivo nos surpreende a chuva, e quando mal damos por nós estamos a perguntar em voz alta se além das nuvens existirá alguém que nos ama».

Nesta linha de pensamento, Leszek Kolakowski afirmou, pouco tempo antes de morrer: «A sobrevivência da nossa herança religiosa é condição para a sobrevivência da civilização». Por isso, precisamos de instrumentos de solidariedade e de coesão, para além dos instintos, dos interesses imediatos e da violência. E tudo isto é especialmente evidente e importante nos dias que correm, quando vivemos um tempo axial, segundo a expressão de Jaspers, em que presenciamos as revoluções económica (da aldeia global, de McLuhan), cibernética, genética e ecológica. No entanto, a lógica de que tudo tem um preço conduziu-nos por um perigoso caminho, no qual a crise financeira, de que tanto se fala e cujos efeitos sentimos duramente, é uma crise de valores e uma crise moral. A dignidade humana é inegociável, os direitos e os deveres fundamentais são incindíveis, o imediatismo e a indiferença conduzem ao desastre. «Uma política sem consciência tende para o crime» - como afirmou Helmut Schmidt, acrescentando, na linha de uma ética da responsabilidade: «o esquecimento de que o Homem não é para a economia, mas a economia para o Homem fez com que a especulação financeira desembocasse no ‘capitalismo de rapina’». O que diria e faria hoje Jesus Cristo se nos viesse visitar? Sentimos sempre o peso do exemplo dos «Irmãos Karamasov». Heiner Geissler, antigo ministro alemão, escreveu em «O Que Diria Jesus Hoje?»: «Quem transforma o valor da bolsa e a cotação das ações de uma empresa em algo absoluto e quem atribui importância, em termos económicos, apenas aos interesses do capital, faz parte das pessoas que, como diz Jesus, possuem muito dinheiro e para as quais será difícil entrar no reino de Deus». Num tempo em que muitos dos alertas feitos passam despercebidos, temos de entender que só a consciência dos limites nos permitirá exercer a liberdade e a crítica, a responsabilidade e a justiça, se entendermos o paradoxo de Walter Benjamin: a História não pode ser pensada sem Deus.