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Hermínio Rico, sj
A fecundidade é dom
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Ansiar pela fecundidade é algo inerente à experiência humana. O desejo que a nossa vida deixe frutos é a procura de expressões concretas, sinais visíveis, que confirmem a força do dinamismo criador que nos move e dá sentido ao nosso viver. Somos em Criação – ao mesmo tempo criados e criativos –, elos duma criatividade no tempo que nos chama para a superação de limites, o prolongamento de nós mesmos, o anseio de deixar marca e perdurar neste mundo. Criaturas e co-criadores, existimos abertos e orientados em tudo para a transcendência. A desvalorização da fecundidade ou o desinteresse por todas as suas formas seriam indícios duma vida menor, (sub)vivida em contradição consigo mesma. Todos queremos ser fecundos, é bom sinal.

Mas a fecundidade é da ordem do dom. Realiza-se na medida em que nos damos. É a gratuidade criadora que ultimamente sustenta o tipo de fecundidade que satisfaz o nosso desejo de transcendência, porque só essa deixa os frutos livres, sem procurar trazê-los de volta, num movimento de reapropriação autocentrada. A necessidade de ser fecundo é saciada apenas quando, pelo dar, o outro, o novo a que se transmitiu existência, é desinteressadamente entregue ao fluxo da vida. O apelo mais profundo da fecundidade só pode ser cabalmente respondido pelo dar, não pelo adquirir. E mais do que pelo dar, pelo dar-se, e dar-se é comunicar o que somos, aquilo que recebemos como dom, que não ganhámos nem nunca possuiremos, mas nos é gratuitamente confiado.

Se a fecundidade é dar-se, não pode separar-se do que somos. Mesmo quando precisa da ajuda de outro ou do auxílio de meios instrumentais, a fecundidade pessoal é, assim, primordialmente, a expressão da identidade diferenciada de cada um, com as suas riquezas e potencialidades, mas também os seus limites. Mais do que só podermos dar o que temos, somos o que podemos dar e damos.

É uma coisa pessoal de cada um, não redutível a modelos culturais uniformizadores, mesmo que suportados em valores muito importantes. Não temos que ser fecundos todos à mesma maneira e há muitas formas de fecundidade. Ela mede-se muito mais pelo grau em que cada um se dá, do que pelo tipo ou qualidade do fruto que cada um deixa.

Enquadrada pelo dar-se no que somos, não faz sentido falar-se de fecundidade em termos de direitos abstractamente igualitários, ou formulá-la a partir de um modelo ideal de realização humana considerado imprescindível para todos. Estes argumentos de reivindicação em nome de direitos universais e, portanto, de não discriminação, podem facilmente resvalar para raciocínios desumanizantes, porque querem fazer todos iguais. Exigindo que se faça tudo para, na aparência, apagar as diferenças é não respeitar a individualidade de cada um. Lutar contra a discriminação é procurar que cada um se possa expressar com verdade no que é, não buscar todos os meios para que todos se remetam ao mesmo.

A fecundidade verdadeira terá que ser sempre, no mais fundo, a expressão do que se é, e será sempre enganador buscar através dela ser outra coisa, manipulando a realidade ou instrumentalizando outros. A fecundidade como experiência de realização pessoal profunda exige reconciliação com a sua identidade e a sua história e aceitação pacificada das coisas que, por qualquer razão, nunca poderão ser. Que é necessário morrer para nascer é, provavelmente, uma verdade mais profunda do que a evidência que é preciso nascer para morrer.

Por tudo isto, quão perigoso é transformar a fecundidade em coisa de comprar e alugar, arriscando a manipulação de outros para proverem uma realização predeterminada que penso poder adquirir. Compreende-se a força dos anseios, a vontade de conformação ao que é tão insistentemente promovido como o normal. Mas respostas apenas extrínsecas têm grande probabilidade de se revelarem ilusórias, compensações superficiais inadequadas à necessidade sentida, e virem a criar mais problemas do que os que resolvem. Há um caminho muito mais promissor: o desafio a uma atenção mais funda ao desejo pessoal de fecundidade, escutando o que ele pede verdadeiramente e buscando a maneira personalizadamente própria de lhe responder. A grande norma, para a fecundidade como para muitas outras coisas, é o dever de ser fiel a si mesmo.