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Hermínio Rico, sj.
Do jurídico para o medicinal
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Na Quaresma intensifica-se o discurso e a reflexão sobre o pecado, o perdão e o sacramento da reconciliação. Corre-se, assim, também o risco de reforçar algumas distorções que as metáforas dominantes e o modelo de enquadramento da questão do pecado em linguagem do campo jurídico favorecem. É minha convicção que se ganharia muito, tanto numa mais correcta imagem de Deus como numa relação mais madura com as práticas da Igreja para mediar o perdão de Deus e o essencial dos seus ensinamentos sobre a vida moral, se deixássemos a ênfase na consideração do pecado e do perdão como analogados de uma situação judicial e os propuséssemos mais em termos de metáforas de doença e cura. Os frutos concretos de liberdade e de encontro mais profundo com Jesus Cristo na vida dos cristãos seriam imensos.

Um dos grandes perigos de enquadrarmos o pecado e o perdão com linguagem e imagens de infracção contra uma lei e da obtenção de uma absolvição é fazermos dessas experiências algo de extrínseco. O mal que sobreviria por causa do pecado derivaria mais da punição acrescentada a posteriori do que da acção em si mesma. E o perdão seria uma procura de uma amnistia ou dum acordo favorável que nos evitaria ter de pagar algo que a lei nos impunha, ou reduziria a pena prescrita a dimensões simbólicas.

Com esta moldura de pensamento, aproximar-nos-íamos de Deus da mesma maneira que o fazemos dum polícia ou dum qualquer sentenciador. Toda a nossa atitude, nessas situações, é defensiva, de reconhecimento da verdade apenas na medida do necessário, procurando atenuantes e desculpas para as transgressões que possamos ter cometido. O que pretendemos é escapar com um atestado de que não há dívidas pendentes. Alimentarmos este tipo de imagens na nossa relação com a misericórdia de Deus pode levar facilmente a que tenhamos com Ele o mesmo tipo de relacionamento que desejamos ter com os outros personagens: quanto menos encontros directos com eles melhor; até nos portamos bem para conseguir esse objectivo.

Não se vê isso na relação que muitos cristãos têm ainda com o sacramento da reconciliação: algo desagradável, sentido até como humilhante, que é preciso cumprir da forma mais despachada e impessoal possível, dizendo apenas o mínimo para ficar descansado que alcancei a absolvição, recebi uma declaração de cadastro limpo? Confessar-se uma vez pela Páscoa seria mais ou menos como ser inevitavelmente uma vez por ano apanhado em excesso de velocidade e ter que resolver a coisa depressa; ou como ter que sofrer o escrutínio anual sobre a declaração do IRS por um funcionário mais ou menos zeloso. Todas igualmente provações impostas que se arrumam na mesma gaveta dos deveres desagradáveis.

Ora o pecado não é uma coisa extrínseca, que só nos traz mal se formos apanhados. É mal verdadeiramente, em sim mesmo para nós e para os outros. E deixa marcas. É doença, mais que transgressão. A ninguém passa pela cabeça ir ao médico a tentar escapar de ter de contar toda a verdade com todos os detalhes, a procurar convencê-lo que está mais saudável do que de facto está. Aliás, o pecado não é tanto uma coisa ocasional que nos acontece, mas uma situação de falta de liberdade com que vivemos e que se exprime regularmente em acções e omissões que nos são deletérias para nós e para os outros e, por isso, também para Deus. Mais do que como um acidente ou uma doença aguda, o pecado é em cada um de nós algo como uma doença crónica, para a qual precisamos constantemente do medicamento da misericórdia divina.

E o perdão, portanto, não é desculpa, é cura. Não é uma limpeza extrínseca do nosso registo de acções más, é uma recriação da nossa vida. Por isso só Deus pode perdoar os pecados, porque só Deus é criador. A nossa visão do sacramento da reconciliação seria muito mais proveitosa e verdadeira se a descrevêssemos na nossa cabeça com metáforas do encontro entre o médico e o doente e nos aproximássemos dela como alguém que precisa de ser curado.

É essa situação que o Evangelho constantemente nos descreve. Jesus cura e cura, não faz julgamentos. Sempre que o quiseram forçar a isso, que o procuraram envolver em casuísticas discussões sobre a Lei, Ele encontra uma saída onde desloca as imagens para situações de cura de feridas ou libertação de doenças. Quando o questionam sobre o maior dos mandamentos, termina a discussão propondo a parábola do bom samaritano; quando o acusam de comer com os pecadores, responde que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos” (Mc 2, 17). Jesus cura paralíticos, leprosos, cegos, até afirmando explicitamente que é para que vejam que tem o poder de perdoar os pecados (Mc 2, 10). Dizia-nos o Evangelho do domingo passado que “Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”. E “salvação” é saúde.