Artigos |
Guilherme d’Oliveira Martins
Tempo de passagem e de renovação
<<
1/
>>
Imagem

Falar do tempo religioso na cultura portuguesa é falar, em simultâneo, dos místicos e dos artífices do diálogo humano de uma dramaturgia que tem em Gil Vicente o seu exemplo mais evidente. E Mestre Gil deve, aliás, ser lido como um caso especial, uma vez que nele encontramos uma espiritualidade pontuada de ironia, num apelo constante à interrogação sobre a humanidade, capaz de compreender os limites e a imperfeição. Os «castelos no ar» de Mofina Mendes, a capacidade de ouvir e ler os sinais dos pastores dos campos, a incapacidade de entender dos escravos das riquezas, a subtileza do «Auto da Alma», o diálogo esclarecedor entre Todo o Mundo e Ninguém no «Auto da Lusitânia – o teatro é motivo permanente de reflexão e de renovação.

Lembremo-nos, ainda, de Frei Tomé de Jesus e de Frei Agostinho da Cruz, que põem o diálogo com a transcendência como modo de conhecer e compreender o mundo das pessoas e a força do próximo e do amor. Assim poderemos entender o que poeticamente Paul Claudel designou como con-naissance – nascimento em comum, partilha, proximidade e amor. Conhecimento não pode deixar de ser compreensão. Frei Agostinho da Cruz é claríssimo: “Claros sinais de amor, ah saudade! / Minha consolação, minha firmeza, / Chagas de meu Senhor, redenção minha”. Mas, os tempos da Quaresma e da Páscoa são dinâmicos, envolvem a provação e a alegria, a limitação e a emancipação e a esperança da passagem suprema. “Minha aldeia na Páscoa… / Infância, mês de Abril! / Manhã primaveril! / A velha igreja. / Entre as árvores alveja, / Alegre e rumorosa / De povo, luzes, flores… / E, na penumbra dos altares cor-de-rosa. / Rasgados pelo sol os negros véus. / Parece até sorrir a Virgem-Mãe das Dores. /Ressurreição de Deus!”. A Quaresma e a Páscoa são, assim, na expressão poética de Teixeira de Pascoaes, o anacoreta de Gatão, o culminar de um tempo de plenitude que chega à “manhã primaveril” que representa a força sublime da Ressureição. Ao lermos Pascoaes, sentimos a tensão viva entre a vida quotidiana (a minha aldeia, povo, luzes, flores), a natureza (entre as árvores) e a chamada à renovação («rasgados pelo sol os negros véus»). De facto, a «Semana Maior» obriga à interrogação sobre as «trevas», simbolizadas na escuridão com que se iniciam os ofícios de Sábado Santo. É a passagem para a Luz, da noite para a alvorada, que se figura. Estamos diante do sinal por excelência da fecunda ideia de cultura – o lançar da semente à terra que a faz germinar, com o zelo do bom cultivador. Mais do que num mundo de boas intenções, estamos perante um apelo de liberdade e de responsabilidade.

E permitam-me que invoque a terminar a pensadora Dalila Pereira da Costa (1918-2012), há pouco falecida, quando lembra, entre os místicos portugueses o já citado frei Agostinho da Cruz, presença de homem e terra, saudosos do céu, vindo da Ribeira do Lima, franciscano da Arrábida, que entende a comunhão com a natureza como fundamento da experiência mística. «No meio desta Serra onde se cria / Aquela saudade d’alma pura / Que no duro penedo acha brandura / Ardente fogo dentro n’água fria». Aqui se ligam finito e infinito na demanda do absoluto, através do exemplo da Virgem. A Natureza passa a ser divinizada – através da experiência poética. «Todo o convento é construído sob o esquema do labirinto, para uma iniciação ou santidade: ambos caminhos visando a um mesmo fim». E lá está o símbolo do Conventinho da Arrábida: «santo e homem, braços abertos em cruz, um pano vendando os olhos, um aloquete fechando a boca, uma vela na mão direita, na esquerda as penitências; e pousa-lhe aos pés a antiga serpente, que se enrola no globo azul do mundo». Ao homem velho antepõe-se o homem novo, à ideia de Deus distante, o amor próximo feito de fé e de vontade. Eis a passagem sublime e a renovação necessária!