Artigos |
Pe. Alexandre Palma
Na caridade, o global e o particular
<<
1/
>>
Imagem

Quando com desconcertante ligeireza se anunciam tantos «dias e acontecimentos históricos», dou comigo a pensar que datas deste nosso tempo serão no futuro percebidas como realmente históricas. Como com facilidade se percebe, quando tudo é histórico então nada é histórico. Que datas serão essas que amanhã surgirão como expressivas desta nossa era e determinantes para a história universal? Do meu ciclo de vida, duas datas me vêm, de imediato, à mente: 1989, data simbólica do colapso comunista no leste europeu; 2001, com os bárbaros atentados às torres gémeas em Nova Iorque.

Se me inclino para estas duas datas é porque vejo nelas mais que o simples registo cronológico de acontecimentos relevantes do nosso passado recente. Elas tornaram-se muito mais que isso. Elas tornaram-se símbolos do nosso momento cultural e civilizacional. Nelas nos podemos conhecer e reconhecer. Não espanta, pois, que tenha sido em seu torno que se consolidaram duas grandes narrativas que interpretam o ar deste nosso tempo: de um lado, o «fim da história» (F. Fukuyama), que vê, na queda da «cortina de ferro», aberta a estrada para a «globalização» do capitalismo e do estilo de vida ocidental; do outro, o «choque das civilizações» (S. Huntington), sensível à crescente afirmação de identidades locais e particulares. Segundo a primeira, o que melhor descreve este nosso tempo é uma certa nivelação cultural (a ocidentalização do mundo), que globaliza economia, cultura, costumes e o que mais houver. Para a segunda, ao invés, importa ver como o nosso tempo se caracteriza pela emergência e a diversificação de tantos particularismos (nacionais, culturais, comerciais, políticos, religiosos) que, ao limite, podem conduzi-los ao «choque». Apesar de contraditórias, estas duas perspetivas dirão qualquer coisa de exato. E dizem-nos porque este nosso tempo é, em si mesmo, profundamente contraditório. Vivemos entre a construção do global e o cultivo do local; entre a procura de um mundo mais universal e a reivindicação de espaço para todo o particular.

E eis que esta reflexão me faz pensar na Igreja e na sua hora presente. Também ela não escapa a este ar do tempo. Também nela se sentem as tensões entre a busca de um modo eclesial de ser sempre mais global e a procura de espaço e reconhecimento eclesial para tantas particularidades. Também nela convivem uma e outra perspetiva, sendo, por vezes, porta-vozes de ambas os mesmos sujeitos ou grupos eclesiais (sem que disso pareçam dar-se conta!). Uma mais globalizante, seja em registo doutrinal (a pluralidade teológica gera desconforto), litúrgico (um só modelo litúrgico), pastoral (uniformidade de critérios e práticas), etc. Outra mais localizante, mais sensível ao particular, mais disponível para reconhecer na complementar diversidade doutrinal, eclesial, litúrgica, pastoral não somente uma riqueza, mas também o justo espaço para a afirmação de sensibilidades particulares.

Tanto no mundo como na Igreja são, pois, sensíveis estas tensões entre global e local, entre universal e particular, entre unidade e diversidade. São-no no presente. Creio que o virão a ser cada vez mais no futuro. Se interessa interpretar bem esta realidade, interessa também encontrar forma de saber viver esta tensão. Esta sabedoria talvez a tenhamos naquele antigo dito: «no necessário unidade; no disputável liberdade; e em tudo caridade». Sim, a caridade é também nisto o critério supremo. Receio que no meio de polémicas nos esqueçamos demasiadas vezes disto: só a caridade jamais passará (cf. 1Cor 13, 8).