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Hermínio Rico, sj
Indignação e responsabilidade
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De repente, esfumou-se a estabilidade social e a generalizada paciente resiliência de quem sabiamente percebe que os sacrifícios no imediato, para corrigir erros passados, são inevitáveis e só eles podem criar os fundamentos para termos, daqui a algum tempo, um futuro de maior prosperidade.

Agora é só indignação. Esgotou-se a tolerância com a austeridade. É como se se tivessem ultrapassado os limites e se soltassem agora todos os freios ao protesto. Subitamente, parece que quem até agora tudo acatava, agora tudo recusa. E a mudança de maré foi de tal ordem que deixou de se ouvir quem tenha opinião contrária. Parece só, ou será mesmo assim? O ‘parece’ entra aqui para acomodar os efeitos do filtro que a comunicação social e a chamada “opinião publicada” sempre impõem à percepção da realidade. E, no caso vigente, esse filtro é particularmente influente.

A indignação é um direito e há razões de sobra para a legitimar, razoáveis, verdadeiras e justas, ou não. Mas, sobretudo na situação delicadíssima em que estamos, tem que ser uma indignação responsável, que se defenda do populismo, da demagogia, do radicalismo inconsciente e do simples oportunismo manipulador. Há direito a indignar-se contra uma medida concreta, mas isso tem que ser moderado por duas questões: uma sobre o fim, outra sobre os meios.

Primeira: o fim prosseguido por essa medida é necessário e benéfico? Mesmo que tenha consequência imediatas duras, que exija sacrifícios no imediato, isso só não chega para uma rejeição terminante, se se trata de um caso de necessidade e se é caminho para um bem desejado, mesmo que este só se cumpra a prazo. Por isso, um repúdio indignado dum objectivo tem que provar que esse objectivo não é benéfico nem necessário.

Segunda: o fim até é justificado, mas pode haver outros meios melhores, ou menos gravosos, para o atingir, meios mais equitativos, mais justos e mais produtivos no longo prazo. Neste caso, a indignação tem que ser acompanhada pela apresentação de alternativas que sirvam os mesmos objectivos, explicando como é que terão uma relação de custos e proveitos mais favorável. E aqui há, sem dúvida, uma enorme exigência de vigilância e disponibilidade democráticas. Para que a democracia funcione na busca das melhores soluções, é indispensável consulta, concertação e negociação que mobilize todos o mais possível. Para isso, é preciso empenho de todos os lados. Toda a contribuição deve ser acolhida e todos devem estar prontos para contribuir responsavelmente.

É aqui, na discussão entre alternativas realistas e seriamente fundamentadas, que se faz a defesa de mais equidade ou se denuncia a injustiça. Neste debate responsável não pode haver lugar para unilateralismos. Nem a ideia de inevitabilidade, que só há uma solução; nem a demagogia de que não há problema ou ele se resolverá sem ser encarado de frente. Nenhuma destas posições é aceitável.

São duas questões e tem que se ter atenção para não confundir a atribuição da resposta respectiva a cada uma. A recusa de um meio mau não justifica que se ponha em causa um fim bom. E a prossecução dum fim bom não justifica meios maus, ou outros que não os melhores disponíveis, para o atingir. É nesta confusão entre meios e fins que tanto a prepotência como a demagogia podem facilmente entrar.

Sem se confrontar com responsabilidade com estas duas questões, do fim e dos meios, uma de cada vez e sem as misturar, a manifestação da indignação que utiliza o desabafo legítimo, mas até resignado, para o transformar em contestação global, mesmo do que é inevitável, não passa dum aproveitamento demagógico e populista que quem não assume responsabilidades, se coloca numa posição de demonizar todos os custos de qualquer solução, mas não se compromete com nenhuma alternativa viável. A vida é muitas vezes dura e às vezes injusta, e revoltar-se contra a dificuldade só porque é difícil, deixando sempre para os outros o encargo de mudar as coisas, é irresponsável. E ainda mais quando se protesta contra a busca de soluções e não a criação de problemas. É muito fácil manipular a apreciação negativa sobre uma solução para um problema pela introdução da sugestão, mais ou menos subtil, de que a nova proposta será a causa do problema, como se a recusa duma solução má fosse, só por si, o desaparecimento do problema, e não, na ausência de alternativa, o seu agravamento pelo adiar de soluções.

As tentações da demagogia e do populismo são muito grandes. A responsabilidade política exige a coragem de tomar e defender medidas difíceis, quando estas são necessárias em nome da justiça e da prosperidade futura, muito mais ainda quando se impõem como condição de sustentabilidade e sobrevivência e até já estão fora da nossa liberdade como sociedade autónoma. Mas esta responsabilidade política é de todos os que são agentes políticos salientes, não só do governo, do parlamento ou dos partidos. Ela estende-se até à comunicação social e àqueles que, por um acesso privilegiado, através dela exercem influência forte sobre a opinião pública e têm o poder não escrutinado de influenciar (ou, às vezes, quase manipular) o clima social do país inteiro.

A nossa situação continua a ser dramática, pela sua profundidade e pelo tempo que inelutavelmente demorará a resolvê-la. A estabilidade, a resiliência, o espírito de sacrifício e a mobilização corajosa e criativa da nossa sociedade como um todo têm sido as grandes razões da nossa esperança. Deitar tudo isto fora numa deriva populista é irresponsável. Se a indignação é um direito de todos, a responsabilidade é um dever igual, mas maior ainda para aqueles cuja palavra pública tem os seus efeitos automaticamente amplificados.