Artigos |
Pe. Alexandre Palma
Uma (boa) razão para ser cristão
<<
1/
>>
Imagem

Em 1957, Bertrand Russell publicava o seu «Porque não sou cristão». Havia de se tornar um texto de referência para o ateísmo contemporâneo. Se aqui evoco esta obra não é, todavia, para interagir com ela. É sim para colocar a questão a partir do outro lado. É para fazer a pergunta: Porque se é cristão? Haverá uma razão pela qual alguém se poderá dizer cristão?

De imediato me vem à mente que o ser-se cristão (ou não) não é uma simples questão de razões. É muito mais do que isso. É algo que toca todo o viver e não somente essa faculdade tão exaltada quanto isolada: a razão humana. É questão de biografia, de itinerário de vida. De afectos. De relação e de relações. É, no fundo, uma questão de experiência. Perguntar, pois, pela razão de se ser cristão (ou não) é algo manifestamente redutor. Reconheço-o. É já fazer um zoom sobre uma realidade que só um olhar panorâmico permite descrever e explicar.

Ainda assim, a pergunta permanece. Se o ser cristão é algo que abraça todo o nosso viver, então ele toca igualmente a razão humana. «Estai sempre prontos a dar as razões da vossa esperança», diz a primeira Carta de S. Pedro (1Pe 3, 15). Não é, pois, esse contexto mais vasto que esvazia a pergunta de sentido. Pelo contrário. Esse espaço largo em que a fé cristã acontece pede também que se procurem as suas razões, que se articule um esboço de resposta ao por que é que se é cristão.

As respostas possíveis a pergunta tão óbvia quanto desconcertante serão tantas quantos aqueles que se reconhecem cristãos. Na verdade, não há duas respostas iguais. Mesmo quando a razão aduzida é a mesma, ainda assim ela respira em cada um de modo diferente.

Se tivesse, pois, de reduzir o facto de ser cristão a esse universo estreito das razões, então, eu talvez dissesse que sou cristão não apenas porque no Evangelho encontro a revelação de Deus, mas também porque nele encontro a interpretação mais justa que conheço da vida. O cristianismo surge para mim também como hermenêutica daquilo que sou, daquilo que experimento em mim e ao meu redor. Ele não me revela apenas Deus (creio que sim e que o faz em primeiro lugar), mas também me revela a mim e a este mundo. Quando mergulhamos no oceano da cultura cristã, então vemos como o enigma da vida e mistério de Deus se iluminam e se mostram coerentes. Aí os paradoxos da vida não deixam de o ser, mas encontram do lado de Deus uma correspondência que lhes traz luz. O Deus cristão, como a vida e o mundo, é também Ele tocado pelo paradoxo. Ele é uno e trino. Em Jesus, Deus faz-se Homem. Na Bíblia, a Palavra de Deus é dita em palavra humana. O seu corpo eclesial é humano e divino, santo sem deixar de ser pecador. Tudo na fé cristã toca e é tocado pela dinâmica do paradoxo. Nisto ela se sintoniza de modo único com a vida. Também esta é tocada na sua essência pelos paradoxos da vida e da morte, do amor e do ódio, do bem e do mal, do céu e da terra, do corpo e da alma, do Homem como ser de uma grandeza única, mas também capaz das mais extremas baixezas. A fé cristã integra, porventura como nenhuma outra realidade, o paradoxo inscrito na vida não para se desembaraçar dele, mas para o abraçar e o elevar em Deus.

Ora desta sintonia brota uma delicada impressão de verdade. Verdade de um Deus que toca a experiência humana. Verdade de uma vida que se deixa decifrar à luz de Deus. É desta misteriosa coerência entre Deus e vida que reconheço uma boa razão para ser cristão. Não será a única. Nem será suficiente para que alguém se passe a reconhecer cristão. Mas desta feliz articulação entre a verdade confessada e a verdade vivida percebemos como o cristianismo é credível. Que a sua mensagem é plausível. E, sobretudo, que o cristianismo torna a vida mais vivível.