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Guilherme d'Oliveira Martins
A herança do Concílio Vaticano II
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O último número da revista «Didaskalia» da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, dirigida pelo Padre José Tolentino Mendonça (2012, vol. XLII, fascículo II) assinala os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II. Vale a pena ler os textos publicados, pelo que nas próximas crónicas falarei dessas reflexões. Hoje ater-me-ei a uma breve análise do texto «O aggiornamento como categoria teológica», de Geraldo de Mori, professor da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, onde se dá nota do impulso fundamental animado por João XXIII e que explica o papel fundamental desempenhado pelo Papa nesse momento crucial da convocatória do Concílio. Para usar as palavras do Sumo Pontífice, tratou-se de abrir de par em par as janelas da Igreja para que o ar puro pudesse circular, sem medo de correntes de ar. O termo «aggiornamento» significou a rejeição do divórcio entre fé cristã e cultura ocidental, intensificado na era moderna, abrindo a Igreja para o diálogo universal com o novo, deste momento da história. No entanto, esse esforço de «pôr em dia» não teria sido possível sem as escolas teológicas do século XX, marcadas pela descoberta das fontes da vida cristã e da teologia e por uma nova atitude diante do presente e do futuro. Os principais autores dessas escolas foram responsáveis pela antecipação dos caminhos que o Concílio trilhou. Lembremo-nos, a título de exemplo, da escola dominicana Le Saulchoir (Chenu, Congar e Schillebeeckx) ou das escolas jesuítas de Lyon-Fourvière (Lubac, Teilhard) e de Innsbruck (Rahner). Apesar de muitas incompreensões, o certo é que uma sólida fundamentação teológica de grandes pensadores levou a que o Concílio correspondesse a uma conjuntura excecionalmente positiva para abrir caminhos novos, no sentido do que, com muita felicidade, João XXIII designou como um novo Pentecostes, «um movimento evangélico dinâmico e uma conversa aberta entre os bispos de todo o mundo sobre como renovar o catolicismo como estilo de vida inevitável e vital». E recordamo-nos da intervenção aberta e modernizadora de bispos portugueses como D. António Ferreira Gomes e D. Sebastião Soares de Resende. Temas cruciais foram: a volta às fontes, os sinais dos tempos e o desenvolvimento. Para o Padre Chenu: «retornar a S. Tomás significava reencontrar o estado de invenção com que o espírito volta, justamente como à fonte sempre fecunda, a pôr os problemas para além das conclusões adquiridas uma vez por todas». E assim «voltar às fontes» corresponderia ao «desejo de redescoberta de elementos ignorados ou pouco explorados das fontes da fé e da tradição que pudessem iluminar o presente». Por outro lado, os «sinais dos tempos» fariam com que a teologia se aproximasse das «mediações a partir das quais (se poderia) pensar a própria fé e sua compreensão nos diferentes contextos». A volta às fontes daria, assim, maior consciência das mudanças ocorridas ao longo da história do cristianismo. A Tradição seria mais ampla e maleável do que a lógica retrospetiva. E a atenção aos sinais dos tempos abriria «os teólogos e a Igreja a uma maior solidariedade com o presente dando-lhes igualmente instrumentos que os capacitassem a melhor compreender os diferentes contextos nos quais a fé cristã era anunciada e crida, adquirido assim maior sentido existencial e maior relevância social». Longe de um retorno ao passado, a «volta às fontes» seria uma busca de Verdade, enquanto os «sinais dos tempos» não seriam apenas atenção ao presente e ao novo, mas adaptação às necessidades humanas de cada época. No dizer de O’Malley, o longo século XIX chegava ao fim, o que obrigava a encarar frontalmente o tema do desenvolvimento, que implicaria uma ideia de progresso não cumulativo e uma rotura, como aconteceu com a «Declaração sobre a Liberdade Religiosa». Como disse o Papa na abertura do Concílio: «é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo». E assim a Tradição torna-se um interlocutor aberto, com que dialogamos para dar «as razões da esperança cristã em seus distintos contextos» sociais e históricos. E a fé afirma-se como «um apelo ao seguimento de Cristo e isso repercute na vida dos cristãos, chamados a um testemunho que se traduz em caridade ativa e inventiva». E deste modo o «aggiornamento» torna-se categoria teológica, agindo sobre a leitura da Palavra, da Experiência e da Prática – como regra de amor e de compreensão do «Outro por excelência, que se oferece como dádiva de esperança e de graça».