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Hermínio Rico, sj
Os desejos e o Desejo
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Início de ano, tempo de perguntar por desejos para o tempo novo que se abre. E então ouvimos: “gostaria que...”, “seria tão bom se...”. E entramos facilmente pela terra da fantasia ou até revelamos caprichos ridículos que depois nos embaraçam. São apenas os “desejos”, manifestação imediata, muitas vezes superficial de que algo nos falta, respondida pela ilusão de ter e amparada na possibilidade irrealista de que simplesmente aconteça sem eu ter que fazer coisa alguma por isso. Temos “desejos”.

Estar insatisfeito, buscar mais e melhor, sonhar alto, apontar a vida para um ideal, procurar superar-se, sair do conforto cómodo, sacrificar algo presente por um futuro mais inteiro, ousar na criatividade, correr o risco até de falhar... Este é um dinamismo que nos constitui e a sua maior ou menor intensidade serve para medir quanto vivemos e quanto existimos apenas. Somos “Desejo”.

Desejo e desejos estão ligados, mas não se devem confundir, muito menos deixar que estes abafem aquele. É preciso estar alerta que desejos não são Desejo. Podem sinalizá-lo, ser manifestação dele, chamar a atenção para o que ele nos quer dizer. Mas não se pode parar neles, tem que se ir mais fundo, à origem de todo o desejar. Desejo cala muito mais fundo, desejos falam muito mais alto. Mas Desejo conduz-nos à unificação de vida e ao sentido mais pleno do que somos, enquanto os desejos, só por eles, nos dispersam e nos dissipam. Há que perceber-lhe as diferenças.

Os desejos são sobretudo da ordem do ter, fazem-nos saltar para um ponto de chegada, imaginam uma satisfação que me acontece, acordam reivindicação de direitos, fecham-nos em nós. O Desejo é uma injunção do ser, é começo e arranque, cria movimento e busca perseverante que é capaz de adiar a gratificação, entusiasma para alcançar por mim mesmo, acorda sentido do dever e mobiliza para o compromisso, abre à superação e à transcendência.

Os desejos frustrados levam à lamentação, a acusar os outros, ou a vida, ou a sorte de não me darem o que mereço. Os desejos saciados rapidamente dão origem ao aborrecimento e a outros desejos mais insistentes, num ciclo de vazio cada vez maior, preso no imediatismo e no epidérmico à busca ansiosa dum repouso confortável cada vez mais distante. O Desejo, enquanto chamamento de um desígnio onde me cumpro, funda o sentido de responsabilidade e dá força para construir. Não se esgota nunca, mas quanto mais se segue mais os limites se alargam, mais a vida se abre e mais energia se encontra para continuar a busca. O Desejo quer sempre mais, mas dá também cada vez mais realização, afasta o horizonte mas dá, ao mesmo tempo, uma experiência de ser inteiro no aqui e no agora que é fonte de paz e tranquilidade num caminho sereno de procura.

Os desejos não se importam com os constrangimentos da realidade, chegam a alimentar idealismos delirantes, sobretudo quando a recusa de perder direitos e privilégios cria a cegueira de não querer ver as coisas como são. O Desejo serve-se do ideal para motivar e mover e levar mais longe do que se considerava possível. Os desejos agarram-se a direitos e privilégios, querem aguentar o adquirido o mais tempo possível. O Desejo serve o dever de justiça, mesmo que pareça utópica e longínqua, e trabalha por ela, até à custa de interesses próprios.

Olhando para um 2013 de crise dura, ficamos apenas com desejos que as coisas melhorem, ou deixamo-nos incomodar e mover pelo Desejo, a ponto de agir corajosamente, já, de modo eficaz, mesmo que com sacrifícios, para transformar a nossa realidade?