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P. Duarte da Cunha
A Ecclesia in Europa 10 anos depois
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Há dez anos, no dia 28 de Junho de 2003, o Papa João Paulo II publicou a Exortação Apostólica Ecclesia in Europa onde expunha as principais conclusões do II Sínodo especial para a Europa que se tinha reunido em Roma quatro anos antes.

Uma coisa parece evidente, a Igreja no nosso tempo tem uma missão especial para a Europa. Não é, porém, diferente da que sempre teve. Dizia o Papa no referido documento: “Da Assembleia Sinodal saiu, clara e veemente, a certeza de que a Igreja tem para oferecer à Europa o bem mais precioso, que ninguém mais lhe pode dar: a fé em Jesus Cristo, fonte da esperança que não desilude, um dom que está na origem da unidade espiritual e cultural dos povos europeus e pode constituir, também hoje e no futuro, um contributo essencial do seu progresso e integração. Sim, passados vinte séculos, a Igreja apresenta-se no início do terceiro milénio com o mesmo anúncio de sempre, que constitui o seu único tesouro: Jesus Cristo é o Senhor; só há salvação n'Ele, e em mais ninguém (cf. Act 4, 12). ” (Ecclesia in Europa 18)

Vejamos brevemente algumas implicações na cultura europeia desta fé onde se percebe que sem a fé a Europa perde a sua identidade cultural específica. Uma primeira constatação a ter presente é de que a Europa não nasceu agora e não se reduz à União Europeia. A Europa – do Atlântico aos Urais – é o continente onde um conjunto variado de povos foi ganhando raízes e adquirindo a sua fisionomia. Aqui e a esta gente a Igreja anunciou Jesus Cristo e levou ao surgir de uma cultura com traços comuns baseados na fé. A defesa da razão e da liberdade, a separação entre Estado e Igreja, a promoção da família como comunidade de vida e amor e o surgir de obras de caridade, que dão visibilidade à cultura do amor e da vida, são alguns dos traços que nascem da fé e mostram o que verdadeiramente une os europeus.

A fé cristã trouxe à nossa cultura um enorme respeito pela razão. Mesmo se houve por vezes incompreensões entre responsáveis da Igreja e alguns cientistas, ninguém pode negar que o desenvolvimento da ciência aconteceu sobretudo na Europa e foi possível porque a fé cristã, garantindo que Deus é bom e inteligente e que os homens, criados à Sua imagem, conseguem conhecer a realidade e agir sobre ela, gerou o ambiente cultural adequado para o desenvolvimento da ciência. A razão encontrou sempre sustento na fé cristã. E hoje volta a ser necessário que a fé salve a razão abrindo-a ao horizonte do significado das coisas e ao sentido da vida.

A fé cristã acredita que o ser humano não é apenas o indivíduo mas a comunhão de pessoas. Se Deus é Ele mesmo uma comunhão, também o ser humano precisa da comunidade para se realizar. A família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, é a célula fundamental. A diferença sexual não é um acaso mas é sinal de uma identidade que é chamada a acolher o outro e a entregar-se ao outro, para que homem e mulher se tornem uma unidade nova capaz de gerar uma vida. A família tal como a conhecemos é um dado inscrito na natureza humana, mas percebê-la na sua verdade é uma conquista da fé. Perder esta consciência destrói a própria civilização.

A fé é fundamental para a compreensão da política tal como nós a entendemos na Europa. Como dizia recentemente o Senhor Dom Manuel Clemente em Bruxelas, “a fundação cristã da Europa tal como a conhecemos, deixou-nos com uma característica fundamental: a distinção entre as esferas política e religiosa: «dai a César o que é de César, e dai a Deus o que é de Deus». Este princípio garante liberdade ao Estado e aos credos religiosos, reconhecendo a ordem específica de cada um, bem como a colaboração mútua desejável em tudo o que respeita e serve a dignidade dos cidadãos, crentes ou não.” Esta sã laicidade, que não se confunde com o laicismo, é importantíssima.

A fé, além do mais, é algo que compromete os crentes com os outros. A ajuda aos mais pobres e aos mais vulneráveis pertence ao ADN cristão. E sem isso, que seria da Europa? O outro, para o cristão, é um potencial amigo e não, como pensava Sartre, um potencial inimigo. Como diz repetidamente o Papa Francisco para provocar os cristãos a uma conversão profunda, é preciso sair de nós mesmo. A Europa está cheia de obras sociais, de hospitais e de escolas que testemunham que o crente sai de si e acredita que o amor pode ser um facto social.

Quando a razão se torna cada vez menos atenta ao sentido das coisas e os sentimentos ganham primazia na tomada de decisões, quando o individualismo egoísta e materialista do liberalismo selvagem se mostra incapaz de vencer a crise económica, quando a solidão se torna uma praga e a família e o matrimónio perdem a fisionomia natural, quando um laicismo radical quer afastar por completo a ideia de Deus da vida das pessoas e a justiça social julga-se capaz de substituir a caridade, é tempo para a Igreja voltar a concentrar-se no anúncio da fé, da caridade e da esperança que só Jesus consegue dar a todo o mundo. Dez anos depois da Exortação Apostólica, no Ano da Fé, é bom recordar que a missão da Igreja na Europa é a fé.