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Guilherme d’Oliveira Martins
«Lumen Fidei»
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No momento em que saudamos, com muita esperança e alegria, a chegada do novo Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e em que agradecemos ao Cardeal Patriarca Emérito, D. José da Cruz Policarpo tudo o que nos deu e tudo quanto dele ainda precisamos, ocorre a publicação da encíclica «Lumen Fidei», que constitui um acontecimento que merece especial atenção. O texto é do maior interesse. Aconselho a sua leitura cuidada neste tempo estival. Bento XVI já nos tinha anunciado que, no Ano da Fé, se completaria o ciclo das cartas encíclicas relativo às virtudes teologais e eis-nos perante um importante texto, subscrito e completado pelo Papa Francisco, num gesto aberto, justo e generoso. Notam-se os contributos dos dois pontífices que intervieram na elaboração do texto, mas estamos perante um documento da Igreja, que não deve ser considerado de mera autoria individual, apesar da influência evidente dos seus autores. A síntese é sabiamente ilustrativa: «a fé não é a luz que dissipa todas as nossas trevas, mas uma lâmpada que guia os nossos passos na noite e isto basta para o caminho». Fé e razão são faces da mesma moeda, e é importante que o entendamos. Nesse sentido, relativismo e pluralismo não podem confundir-se. Se é certo que vivemos numa sociedade marcada pelas diferenças e pela liberdade, como no-lo ensinou o Concílio Vaticano II, não é menos verdade que os valores espirituais têm de ser considerados, como fatores de compreensão dos limites e da consciência da responsabilidade. Como disse o Padre M. D. Chenu, «o cristianismo é o mistério de Cristo que vive, morre e ressuscita em mim e em cada um». Numa boa tradição nova, iniciada com Bento XVI, a encíclica cita, além dos documentos da Igreja, autores de uma cultura secular, em nome de uma sã abertura ao mundo. Por isso se recorda que «o jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza de proceder de forma autónoma». E acrescentava: “Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga”. O crer opor-se-ia ao indagar» (LF, 2). Procurando superar a dúvida de Nietzsche, a encíclica fala-nos de uma fé que não espolia a vida de novidade e aventura e que não é uma ilusão de luz, antes abrindo caminho da liberdade pessoal. E recorda-se que «é conhecido o modo como o filósofo Ludwig Wittgenstein explicou a ligação entre a fé e a certeza. Segundo ele, acreditar seria comparável à experiência do enamoramento, concebida como algo de subjetivo, impossível de propor como verdade válida para todos (LF, 27). A dignidade da pessoa humana como noção irrepetível obriga a entender os caminhos da fé e da razão como complementares e incindíveis. «Devido (…) à sua ligação com o amor, a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. A fé nasce do encontro com o amor gerador de Deus que mostra o sentido e a bondade da nossa vida; esta é iluminada na medida em que entra no dinamismo aberto por este amor, isto é, enquanto se torna caminho e exercício para a plenitude do amor. (…) A fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um futuro de esperança (LF, 51). Num tempo em que o imediato parece fechar os caminhos de saída para a crise, é tempo de olhar o horizonte e de pôr a nossa vontade ao serviço das pessoas e do bem comum. E os sinais dados pelo Papa Francisco de abertura, amor e justiça são encorajantes. «Quando a fé esmorece, há o risco de esmorecerem também os fundamentos do viver, como advertia o poeta T.S. Eliot: “Precisais porventura que se vos diga que até aqueles modestos sucessos / que vos permitem ser orgulhosos de uma sociedade educada / dificilmente sobreviveriam à fé, a que devem o seu significado?”» (LF, 55).