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Hermínio Rico, sj
Fé à prova de idolatria
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Ao começar a ler a Lumen Fidei, parei em três palavras no final do primeiro número: “Quem acredita, vê”. Chamaram a atenção porque são o contrário da regra que, em tantas situações em todas as áreas da vida, orienta o modo de pensar hoje tão generalizado: primeiro quero ver para depois acreditar; só com a garantia prévia do sucesso aceito qualquer risco. Identificamos esta mentalidade em todas as situações onde é necessário fazer escolhas, onde se pede compromisso, ou onde está em jogo a fidelidade a obrigações permanentes livremente assumidas. Há, assim, uma contradição entre uma cultura da segurança só na certeza e a atitude básica de fé. Levanta-se, então, a questão: o que é que vem primeiro, esta cultura ou o decréscimo da fé? Foi o surgimento destes traços na nossa atitude perante a vida que começaram a criar dificuldades à fé religiosa, ou é o decréscimo do impacto da fé na forma como nos posicionamos na vida que criou e está a fazer crescer estas características culturais que condicionam a atitude das pessoas de hoje perante os grandes desafios da vida?

Se é primeiro o ovo ou primeiro a galinha não interessa assim tanto. Olhando pelo lado de quem faz do serviço da fé o objetivo primordial de toda a sua vida, o que fica é a consciência que a evangelização, o esforço de formular propostas que possam ajudar a despertar da fé, não pode ignorar esta mentalidade entranhada – e muito mais vasta e profunda do que o simples acreditar ou não acreditar em Deus – da aversão ao risco e da busca duma segurança impossível, assente num conceito reducionista de conhecimento. Toda a encíclica trata destas questões ao nível da análise cultural, do debate filosófico e da proposta teológica, e merece muito a pena estudá-la e usá-la como ponto de partida para discussões e conversas, sobretudo com gente jovem, a passar pelo tempo vital de estruturação das suas próprias certezas, de busca das suas seguranças e do estabelecimento dos seus critérios de valor e verdade.

E não é só em quem não acredita que encontramos estes traços. Mesmo a fé pode facilmente tornar-se uma «segurança» possuída, quando se cristaliza em arrogante presunção de propriedade exclusiva da verdade ou se reduz a um rigorismo defensivo que tudo joga e tudo decide por uma norma estática, em que a ortodoxia ou a tradição correm o risco de se tornar ídolos. Fica-se, assim, apenas com o lado do passado, esquecendo o lado de abertura ao futuro: “a fé é luz que vem do futuro, que descerra diante de nós horizontes grandes e nos leva a ultrapassar o nosso ‘eu’ isolado abrindo-o à amplitude da comunhão” (LF, 4).

O grande obstáculo a uma fé verdadeira – tanto em quem não acredita como em quem acredita – é, na cultura contemporânea como foi sempre, a tentação da idolatria. No ídolo está uma oferta aparente de segurança já, mas “a fé pede para se renunciar à posse imediata” (LF, 13). “Diante do ídolo não se corre o risco de uma possível chamada que nos faça sair das próprias seguranças” (LF, 13), mas “acreditar significa confiar-se (…) a fé consiste na disponibilidade a deixar-se incessantemente transformar pelo chamamento de Deus” (LF, 13). A fé pede-nos o abandono do eu que se pensa seguro na posse, para nos abrirmos ao risco da confiança no outro. Ela não se defende nem se promove por simplistas certezas de cartilha que recusam a busca, a investigação e a dúvida. A fé não pode fechar, tem sempre que abrir mais; não pode ser um expediente para nos tirar o medo dos cantos escuros, mas uma luz que tudo ilumina.

Como lutar contra este obstáculo insidioso? A encíclica propõe o retorno à origem da fé: o encontro pessoal com o Deus vivo, que nos converte da pulsão do possuir para a abertura do acolher. É isso que nos liberta para discernirmos a verdade. Assim se explica que é preciso acreditar para ver: “A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para ver a realidade” (LF, 26).