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Pe. Alexandre Palma
O que são os Evangelhos?
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Admito que a muitos soe estranha esta pergunta: o que são os Evangelhos? Parece quase óbvio o que eles são: os livros que falam acerca de Jesus. Ainda assim, esta questão tem animado intensos debates entre os estudiosos do Novo Testamento. Neste debate, essa pergunta toma uma forma mais precisa: qual o género literário dos Evangelhos? Assim sendo, esta questão torna-se bem menos estranha e inocente, pois o modo como lhe respondermos acabará inevitavelmente por influenciar o modo como lemos os ditos Evangelhos.

Este tema ganhou recentemente uma visibilidade maior com a entrega do prémio Ratzinger (atribuído a autores que se distingam no âmbito dos estudos teológicos) ao teólogo anglicano Richard Burridge (pela primeira vez este galardão é entregue a um autor não católico). Com efeito, o que evidenciou a obra de Burridge foi precisamente a sua resposta à nossa questão. Segundo ele, os Evangelhos são, quanto ao género literário, biografias em tudo semelhantes a outros escritos contemporâneos de autores gregos e latinos. Esta tese não foi (nem é) unânime. Ao tempo (início dos anos 90) ela destoava do consenso entre os estudiosos da matéria. Era então pensamento comum que os Evangelhos não seriam propriamente crónicas biográficas, mas sim que eles exibiam um género literário completamente singular (R. Bultmann). Por isso, alguns viam no Evangelho segundo S. Marcos (o mais antigo) o início absoluto de um novo género literário, até então inexistente. Segundo Burridge, o erro na base desta posição estava em comparar os Evangelhos com as biografias modernas, vício que não permitia ver neles o género biografia. Mas quando comparados com o modo antigo de contar a vida de pessoas ilustres, os Evangelhos parecem aproximar-se desse tal género biográfico. É, pois, essa a sua resposta à pergunta sobre o que são os Evangelhos: são biografias, mas biografias escritas à maneira dos antigos.

Por muito que me entusiasme com estes assuntos, sei bem que não é este o espaço para explanar todas as minudências dos debates académicos. Talvez até consiga despertar o interesse de um ou outro leitor para este tipo de discussões. Mas não é por isso que aqui trago este apontamento. Trago-o sim, porque este debate permite ver como os Evangelhos resistem sempre às leituras que deles fazemos, mesmo àquelas mais fundamentadas. Como as grelhas de análise que criamos, mesmos se justas e corretas, não esgotam o texto, pois este é sempre maior e faz-se sempre novo. Com efeito, assim como Burridge fez rever a leitura estabelecida dos Evangelhos, não falta nem faltará quem reveja e venha a rever também a sua leitura biográfica dos mesmos. O que fica é mesmo o texto. E é perante ele que cada de nós se há-de perguntar: o que são os Evangelhos? Não tanto como frio exercício teológico ou literário, mas sobretudo como quem se compromete na resposta que dá.