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Manuel Barbosa, scj
Comunidades acolhedoras e misericordiosas
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Vivemos hoje o chamado Domingo da Divina Misericórdia, festa instituída para toda a Igreja por João Paulo II a partir do ano 2000, sempre no segundo domingo da Páscoa.

Esta celebração é por vezes conotada com a devoção espiritual da Irmã Faustina Kowalska, com visível expressão no respetivo símbolo tão divulgado e no bem conhecido Santuário da Divina Misericórdia em Cracóvia. Por muito importante que seja esta devoção, penso que fundamentar aí esta festa seria limitar o sentido da misericórdia de Deus tal como nos é revelada na sua Palavra. Aliás, o Papa Francisco tem manifestado com intensa frequência esta essencial dimensão da Igreja, colocando sempre a ênfase na sua referência bíblica. Em todo o número 114 da exortação apostólica Evangelii Gaudium há uma forte interpelação às comunidades cristãs para que sejam fecundas de misericórdia no amor de Deus.

«Ser Igreja significa ser povo de Deus, de acordo com o grande projeto de amor do Pai. Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho».

Por feliz coincidência, a primeira leitura dos Atos dos Apóstolos deste domingo caracteriza a comunidade primitiva como comunidade de irmãos que vive em comunhão fraterna, que é assídua ao ensino dos apóstolos, que celebra liturgicamente a sua fé, que partilha os bens e que testemunha aquilo que é. Trata-se de uma fotografia da comunidade cristã de Jerusalém, a sinalizar que comunidades cristãs devemos ser hoje.

Embora não surja de modo explícito, a misericórdia está implícita nos vários elementos descritos neste sumário neotestamentário: a comunidade de irmãos vive no amor, nunca deveria ser um grupo de pessoas isoladas e individualistas; a comunidade constrói-se à volta da Palavra de Deus, escutando o ensino dos Apóstolos e partilhando a Palavra; a comunidade vive eucaristicamente a experiência de amor partilhado com os irmãos de fé; a comunidade serve, acolhe e testemunha o amor misericordioso de Deus.

Sabemos da urgência, fundada na exigência da fé no Ressuscitado, em sermos cada vez mais comunidades misericordiosas, acolhedoras e missionárias. Na sociedade que nos habita não faltam imagens de violência e atitudes de ódio e vingança. Há necessidade de palavras e gestos de conciliação e reconciliação, de ternura e perdão, de fidelidade e confiança, de amor e misericórdia. Não basta rezar ao Deus “misericordioso, lento na cólera, cheio de fidelidade e lealdade”. Somos cada vez mais interpelados a perdoar, a ter um olhar e uma escuta de bondade sobre os outros, a refrear os nossos impulsos de cólera, a ser fiéis aos nossos compromissos e leais nas nossas palavras e nos nossos atos, a ser pessoas com coração misericordioso.

Aqui até faz sentido a breve descrição que o dicionário Wikipédia faz da misericórdia como sendo «a virtude que nos leva à compaixão pelos semelhantes. É a junção de duas palavras latinas miseratum (compaixão) e cordis (coração). Assim, poder-se-ia entender literalmente misericórdia como coração compadecido».

Sem recurso a outros elementos devocionais, por importantes que sejam, a misericórdia deveria ser assumida tanto nos nossos corações e no coração das nossas comunidades cristãs, sempre a partir da Palavra de Deus, como nos carismas fundacionais de tantas comunidades de vida consagrada. Imbuídos pela misericórdia de Deus que penetra as entranhas do nosso ser, os que vivem nas periferias da existência deveriam ser entrelaçados pelos que vivem Cristo Ressuscitado em comunidades acolhedores e misericordiosas.