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Nuno Cardoso Dias
O sacrifício
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[Abraão] «Mas não provará isto que te amo, que estava disposto a entregar-te o meu filho único para cumprir um teu capricho?»

E o Senhor disse: «Isso prova que há homens que obedecem a qualquer ordem, por mais imbecil que seja, desde que uma voz ressonante e bem modulada a formule.»

Woody Allen, Sem penas

 

A Bíblia abre com um sacrifício ou melhor, com a recusa de um sacrifício, substituído por outro, o do bode expiatório. A imagem é duríssima – um Deus que reclama o filho, o único filho – e apenas é aliviada, sem ser recusada – Deus compraz-se na disposição de Abraão, embora não lhe exija tanto. Um teste de fidelidade, dizem alguns. Parece-me que a ideia central é a de que Deus não quer sacrifícios humanos. Talvez hoje isto seja óbvio, mas esta ideia sacrificial continua a ecoar pelo Antigo e pelo Novo Testamento, até aos nossos dias.

Há ecos desta ideia em certas interpretações da Páscoa de Jesus. Muito daquilo que dizemos sobre a Páscoa assenta nesta ideia de sacrificial de expiação, de penhor, de oferta. Estranho Deus, esse, que reclamasse já não o único filho de outros, mas ainda e mais: o seu próprio filho em sacrifício.

E assim ficamos com a Páscoa nas mãos. Que sentido dar àquela morte e àquele sofrimento? Um Jesus que antevê e aceita um desenlace que não quer. Silêncio. Abandono. E depois vazio. Vazio o túmulo. E é esse vazio que é espaço de esperança e ressurreição. Ressurreição que se reconhece no partir do pão.

 

Não foi por mim nem por ti nem por ninguém

que tu morreste

e continuas a morrer todos os dias

Há quem não saiba fazer outra coisa senão morrer

e voltar a morrer

Nem a vontade do Pai te serve de alibi

Não foi por mim que tu morreste

embora eu seja capaz de morrer por ti

Jorge Sousa Braga, Salmo, O Novíssimo Testamento e outros poemas

 

Em Ponta Delgada, cidade onde vivo, a maior celebração religiosa é marcada pela imagem de Cristo sofredor: Ecce Homo – as palavras de Pôncio Pilatos aos judeus, depois de o reduzir a nada, esperando a misericórdia do povo. Não foi Deus que gritou “À morte”. Foram homens.

Nessa celebração maior há ainda o hábito de cumprir promessas, tantas vezes em voltas à praça de joelhos. Muitas vezes com elas se pede ou se agradece uma intervenção de vida e de morte: um nascimento, uma cura. É ainda a imagem de um Deus que podia ter tirado Jesus da cruz – “Se és filho de Deus, ele que te salve”. (Estranho Deus, esse, que podendo salvar o seu filho não o fizesse.) É ainda a ideia de um sacrifício agradável a Deus. (Estranho Deus, esse, que se compraz com joelhos esfolados ou fidelidades provadas à custa de joelhos).

Recentemente a praça foi alvo de uma intervenção, que, entre muitas outras coisas, criou um caminho de pedra regular, que envolve toda a praça. A intenção será suavizar este sacrifício. Não é minha intenção centrar-me na intervenção urbanística, tão bem intencionada quanto discutível. Com ela se expõe em pedra nua este enorme contraste, entre uma arquitectura moderna e uma crença arcaica. Não fica senão a esperança de que aquela pedra nunca venha a manchar-se de sangue sacrificial.

 

“O escriba disse-lhe: «Muito bem, Mestre, com razão disseste que Ele é o único e não existe outro além dele; e amá-lo com todo o coração, com todo o entendimento, com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e todos os sacrifícios.»

Vendo que ele respondera com sabedoria, Jesus disse: «Não estás longe do Reino de Deus.» “

Mc 12, 32-34