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Pedro Vaz Patto
A propósito dos vistos gold
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Parece que os chamados “vistos gold” (isto é, a atribuição de autorização de residência em condições mais favoráveis a cidadãos estrangeiros que no nosso país invistam quantias acima de determinado montante) têm tido um verdadeiro sucesso na dinamização do mercado do imobiliário em tempos de crise.

Há quem alerte, porém, para os perigos de desta forma se facilitar o branqueamento de capitais, com o investimento de dinheiro de origem ilegal ou criminosa. Esse perigo pode ser debelado através de algum controlo na concessão e cancelamento dos vistos.

Mas há outra questão que torna, em qualquer caso, questionável, de um ponto de vista ético, o regime destes vistos. O regime, mais favorável em relação ao comum dos cidadãos estrangeiros, de atribuição destes vistos traduz-se numa discriminação positiva não em favor de quem, pela sua vulnerabilidade, possa ser mais carecido de proteção (situação que em regra justifica as discriminações positivas), mas, pelo contrário, em favor de quem dessa proteção menos carecerá. Quase poderemos dizer que estamos perante uma verdadeira «opção preferencial pelos ricos».

Um critério pragmático e utilitarista sobrepõe-se, assim, a critérios éticos de justiça.

O exemplo está longe de ser inédito, como bem podemos verificar. Em muitas outras situações se dispensam critérios éticos em nome de um cálculo utilitário de consequências.

Ainda recentemente, o líder da oposição também propôs a criação de tribunais especiais, mais céleres, para regulação de questões com um maior alcance monetário, como medida apta a favorecer o investimento, em particular o investimento estrangeiro. Os cidadãos e as pequenas e médias empresas continuariam sujeitos à normal morosidade judicial…

Também em nome da promoção do investimento, advoga-se a abolição de direitos dos trabalhadores em grau crescente. Ou advoga-se para os rendimentos do capital um tratamento fiscal mais favorável do que o que incide sobre os rendimentos do trabalho. Esquece-se que a economia deve estar ao serviço da pessoa, e não o contrário.

No âmbito das relações entre Estados, quantas vezes as vantagens económicas (certamente não desprezíveis) levam a fechar os olhos à corrupção institucionalizada ou à violação dos direitos humanos que se verificam nos parceiros comerciais?

Uma argumentação de outro tipo, mas igualmente influenciada pelo utilitarismo, é a que está subjacente às denominadas políticas de “redução de danos”, que se pretende aplicar em vários domínios. Por vezes com a melhor das intenções, ultrapassam-se barreiras éticas fundamentais. Para evitar os malefícios do aborto clandestino no plano da saúde pública, propõe-se a legalização do aborto. E também por razões sanitárias se propõe a legalização da prostituição ou a distribuição controlada de droga. Em qualquer destes casos, é derrubada uma barreira ética fundamental, porque o Estado, de uma ou de outra forma, torna-se cúmplice de práticas contrárias a direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana. E, mais do que a redução de danos, há que os eliminar n sua raiz, o que só se obtém procurando eliminar em si mesmos (sobretudo com propostas alternativas), o aborto, a prostituição e o tráfico e consumo de drogas.

O cálculo utilitarista de consequências não justifica o derrube de barreiras éticas fundamentais, porque há atos que nunca são eticamente admissíveis, nem mesmo quando com eles se pretende atingir fins legítimos, porque os fins não justificam os meios.

Importa que as opções políticas não se rendam ao pragmatismo utilitarista, sacrificando princípios éticos fundamentais. Se o fizerem, as vantagens do curto prazo hão-de conduzir a mais graves desvantagens numa perspetiva de maior alcance. São os próprios alicerces da convivência social que se vão corroendo quando se sacrificam esses princípios. Sem coerência ética, nenhuma instituição consegue obter dos cidadãos o reconhecimento da sua legitimidade, sem o qual pode exercer-se o poder, mas não a autoridade.

Tudo isto vem a propósito da questão dos vistos gold.