Artigos |
Guilherme d’Oliveira Martins
Arriscar a vida…
<<
1/
>>
Imagem
«O verdadeiro cristão arrisca a sua vida, a sua fama e a sua comodidade para que ninguém se perca». Quem o disse foi o Papa Francisco na homilia proferida no dia 6 de novembro na Casa de Santa Marta. Os cristãos não devem ter medo «de sujar as mãos, para ir ao encontro dos pecadores». Não devem ser como os fariseus e os escribas que, «para evitar escândalo, ficam na metade do caminho». O verdadeiro pastor, o verdadeiro cristão «tem este zelo interior: que ninguém se perca». É de compromisso cristão que se trata, uma vez que o «sujar as mãos» significa ir ao encontro dos outros que precisam de nós. Urge não ter medo de ir onde se tem de ir, arriscando a vida, a fama, a comodidade e até o estatuto social… O Papa foi muito claro. O pastor apenas pode cuidar das suas ovelhas se se mantiver atento, prevenindo, agindo, arriscando para que nenhuma delas se perca. «Jesus veio para isso: para ir buscar aqueles que se afastaram do Senhor. Deus não para, não vai só até certo ponto, mas vai até final, até ao limite. Vai. Sai. Não diz: «Eu fiz tudo, agora o problema é deles». Eis a dificuldade perante a qual nós, pessoas comuns, nos encontramos. É que há demasiadas coisas a salvaguardar, muitos receios que pesam e que obrigam a contrapor responsabilidade à indiferença, dever à inércia, compromisso à comodidade… E ainda há pouco, durante o Sínodo sobre a Família, o Papa Francisco colocou-nos perante a exigência de estarmos atentos aos dramas, às angústias, às dificuldades, às dúvidas e aos limites. Daí que tenha sido dado um sinal de transparência e de abertura, para que haja coerência entre os valores que defendemos e as atitudes que temos de assumir. O sábado fez-se para as pessoas e não as pessoas para o sábado. Se os cristãos não devem ter medo «de sujar as mãos para ir ao encontro dos pecadores» é porque a compreensão mútua e o respeito obrigam sempre a sair ao encontro de quem precisa. Este é o sinal concreto da esperança que temos de dar…

Num destes sábados, o meu amigo Padre José Tolentino Mendonça perguntou-me se eu já tinha dado pela Biblioteca Indispensável, iniciativa das Paulinas, sob a sua própria direção. Sim, trata-se de uma iniciativa que fazia falta e que inclui clássicos do espírito cristão. E lembrei-me do velho (e tão saudoso) Círculo do Humanismo Cristão que o António Alçada Baptista lançou no final dos anos cinquenta. A coleção (esta, como a outra) pretende testemunhar a vitalidade, a diversidade e a surpresa da experiência de Deus. E o que encontramos? Capas duras, austeras, belíssimas e três primeiros livros publicados: «Os Portais do Mistério da Segunda Virtude», de Charles Péguy, com tradução de Armando Silva Carvalho; «A Pedreira e outros Poemas» de Karol Woytila, S. João Paulo II, com tradução de Henryk Siewierski, José Blanc de Portugal, Manuela Domingos, Maria de Lourdes Belchior, Maria Teresa Dias Furtado e Teresa Bação Fernandes; e ainda «Eu e Tu» de Martin Buber, com tradução de Artur Mourão e Sofia Favila. José Tolentino, relativamente a Péguy confirma o que os meus amigos João Bénard da Costa e Alberto Vaz da Silva sempre disseram: «Os Portais do Mistério» é o mais assombroso poema sobre a esperança de toda a literatura contemporânea. E se há pouco lembrámos as recentes palavras do Papa Francisco sobre o compromisso e sobre a compreensão dos outros, o certo é que é a força desta Esperança que encontramos – no sentido de um ânimo de liberdade e amor. Hans Urs von Balthasar escreveu, por isso, que «Péguy é indivisível, ele mantém-se dentro e fora da Igreja, ele é a Igreja, ele é a Igreja “in partibus infidelium”, lá onde a Igreja deve estar… Lá onde o mundo e a Igreja, mundo e Graça se encontram e se interpenetram, até ao ponto em que se torna impossível distingui-los». Conheci a obra de Péguy muito cedo e posso dizer que a minha formação e o meu percurso ético e cívico deveu-lhe quase tudo. Os ecos de Péguy ecoaram no combate contra a «desordem estabelecida», de que Mounier falou, nas transições para as democracias, na consolidação das liberdades e na queda dos diferentes muros (que muitas vezes parecem regressar) e contra os quais a voz do Papa Francisco se tem levantado. Se precisamos de pontes mais do que de muros, Charles Péguy demonstrou-o – e recordamo-lo no centenário da sua morte, com tantos e tão relevantes ensinamentos. Já Martin Buber permite compreendermos a filosofia do encontro e da síntese entre o evento e a eternidade – como Bachelard e Ratzinger no-lo ensinaram em registos diferentes. No fundo, o «outro» é a projeção do que somos e a plena realização do respeito mútuo.

Insistimos: os cristãos não devem ter medo «de sujar as mãos para ir ao encontro dos pecadores». Não devem ser como os fariseus e os escribas que, «para evitar escândalo, ficam na metade do caminho». Péguy, Martin Buber e João Paulo II iluminam os nossos passos nesse sentido. A Esperança é encorajadora e desafiante. A procura do outro é uma responsabilidade permanente. A peregrinação interior prolonga-se na busca de quem pede a nossa resposta e a nossa presença. Impõe-se que saiamos, pelos caminhos do mundo, ao encontro de quem nos espera e de quem espera!