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Guilherme d’Oliveira Martins
Santa Teresa de Jesus (1515-1582)
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Celebrou-se há alguns dias o centenário do nascimento de Santa Teresa de Jesus, ocorrido a 28 de março. E devemos recordar que o escritor português Manuel de Lucena, que há pouco nos deixou, é autor, em língua portuguesa, da extraordinária tradução de uma das obras mais difíceis da fundadora das Carmelitas descalças. Trata-se de «Moradas do Castelo Interior» (Assírio e Alvim), livro que nos permite entender a riqueza espiritual de uma das grandes escritoras europeias de sempre.

Nada melhor do que ler esse extraordinário repositório de ricas reflexões. E o cuidadoso e competente tradutor (num trabalho de décadas) mostra-nos muito bem com que zelo Madre Teresa de Jesus procurou equilibrar, na sua experiência mística, os elementos intelectual e volitivo ou cordial… E Manuel de Lucena confessa que recebeu inspirados conselhos do Padre Manuel Antunes, que se inclinavam para a razão, enquanto o filósofo Carmo Silva tendeu para o elemento cordial, procurando ambos equilibrar os fatores – ora a luz, ora o calor, apesar da luminosidade por ambos realçada no testemunho da Doutora da Igreja… Ao lermos a obra, caminhamos entre os dois polos: «Mas tenho por vezes a impressão de que é a própria Santa Teresa quem oscila, atravessada pelo confronto das escolas».

Vicissitudes múltiplas permitiram que a obra se fosse caldeando e purificando, e o resultado é, de facto, precioso. Assim encontramos Teresa Sánchez de Cepeda Dávila y Ahumada, graças à generosa mediação de uma fiel tradução e de um fantástico e incansável trabalho literário de cerzidura, palavra a palavra, dando-nos uma lição sobre como ser «tradutore», sem ser «traditore»…

Seguindo a inigualável curadora das palavras sublimes, percorremos as sete moradas do castelo interior, progredindo num abrir sucessivo de novas portas (que Bernini representa no momento supremo): começa pela disponibilidade interior para o trato divino com a oração vocal; segue na oração mental discursiva e meditativa; na oração da amizade ou afetiva; no recolhimento, em difícil percurso da ascese para a mística; na oração da quietude, em que a vontade se suspende; na oração de união, com as potências despertas mas cativas; e culmina na oração de êxtase, em que a alma «atingiu o seu repouso ou já viu tanto que nada a impressiona». São sete moradas, «mas cada uma contém muitas outras – em baixo e em cima e dos lados – com lindos jardins, fontes e labirintos, coisas tão deleitosas que desejareis desfazer-vos em louvores do grande Deus que criou este castelo à sua imagem e semelhança». Santa Teresa de Ávila vai mais longe do que outros célebres teólogos. S. Boaventura previra três estádios: purificação, iluminação e união; enquanto a espiritualidade «sufi» consagrava quatro momentos: de abid ou servidor, de zahid ou asceta, de arif ou conhecedor e de muhibb ou amante que se une à verdade absoluta… Teresa de Jesus vai, assim, ao fundo e com João da Cruz exprime o que nenhuma outra literatura alcançou.

Mas, para chegar aqui, antes das sete moradas, há quatro momentos de regar o nosso horto interior – ao içar a água de um poço à força de braços; com a ajuda dos alcatruzes da nora; ao tirar a água do rio ou ao aproveitar o efeito da chuva, sem especial esforço… Pressentimos o seu método de trabalho, entre os utensílios da cozinha e a lida do convento. A mística que propõe está, afinal, ligada ao quotidiano da vida. Eis o percurso, mais ou menos longo, que tem de ser feito: do recolhimento ao êxtase… A paixão e a razão encontram-se, completam-se e expandem-se ou limitam-se mutuamente. Por isso, Santa Teresa de Ávila coloca-se do lado da laboriosa Marta, sem esquecer a atitude de Maria: «Crede-me: para hospedar o Senhor, Marta e Maria têm de andar sempre juntas, fazendo-lhe constantemente companhia e recebendo-o como deve ser, sem lhe faltarem com nada. Ora Maria, sempre a seus pés sentada, como poderia dar-lhe de comer se a irmã não ajudasse?»… Manuel de Lucena compreendeu bem essa tensão, porque lhe coube o pedaço de Marta, sem poder esquecer Maria – podendo citar Ciorán quanto ao «desejo abrasador de não sobreviver à emoção»…