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Guilherme d’Oliveira Martins
Uma entrevista para pensar e agir
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A entrevista concedida pelo Papa Francisco a Aura Miguel para a Rádio Renascença não constitui apenas um facto inédito, corresponde também a uma atitude nova que o Sumo Pontífice deseja assumir de se aproximar das pessoas – dos cristãos, mas também mulheres e homens de boa vontade, no sentido desejado por Jesus Cristo e seguido pelos grandes santos da Igreja, de S. Francisco de Assis a S. João XXIII. E se lermos com cuidado o texto do diálogo, percebemos que há, por um lado, uma preocupação de usar uma linguagem simples e próxima, acessível a todos, e simultaneamente apelar ao compromisso de todos em nome da dignidade humana, do respeito mútuo, da defesa e salvaguarda do bem comum. Como ficou claro no encontro com os Bispos portugueses, há uma compreensível preocupação com os mais jovens, e com a necessidade de ir ao encontro deles no tocante à fé, à esperança e ao amor, baseados na Boa Nova. Numa sociedade de imediatismo, de indiferença e de idolatria, este compromisso constitui para o Papa Francisco um desafio e um apelo muito sérios. Daí falar do ensino e do exemplo para os mais jovens. «A catequese (diz-nos) é dar-lhes doutrina para a vida e, portanto, tem de incluir três linguagens, três idiomas: o idioma da cabeça, o idioma do coração e o idioma das mãos. E a catequese deve entrar nesses três idiomas: que o jovem pense e saiba qual é a fé, mas que, por sua vez, sinta com o seu coração o que é a fé e, por sua vez, faça coisas. Se falta à catequese uma destas três línguas, destes três idiomas, não avança. Três linguagens: pensar o que se sente e o que se faz, sentir o que se pensa e o que se faz, fazer o que se sente e o que se pensa». Não há comunicação se não houver exemplo, compromisso, responsabilidade. A cabeça, o coração e as mãos são, assim, a matéria prima do exemplo e da atenção. E quantas vezes fica-se a meio do caminho, sem assumir plenamente tudo o que é devido, desde das dúvidas ou das dificuldades até à determinação de agir… Alguém diz comprometer-se e depois distrai-se no percurso e abandona quem está na margem da estrada à espera de ajuda. Eis a contradição suprema que o género humano se defronta, entre a intenção e o compromisso. Na parábola do Bom Samaritano, perante a vítima, o sacerdote e o levita passaram adiante e foi «um samaritano, que ia de viagem», que «chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de piedade» (Lc. 10, 33). Aqui estão as limitações do nosso e de todos os tempos. Não basta dizer, pregar, indicar… De boas intenções está o inferno cheio… É preciso pôr as mãos no barro, correr riscos, encarar o rosto de quem sofre. Que cruz nos é reservada? Os temas incómodos são abordados pelo Papa, como sempre tem acontecido. E todos sabemos quais os riscos de quem pode ser mal interpretado no que afirma. Neste momento, perante o desastre humanitário dos refugiados, e depois de ter ido a Lampedusa, perante a falta de respostas concretas, afirma: «É a ponta de um iceberg. Vemos estes refugiados, esta pobre gente que escapa da guerra, que escapa da fome, mas essa é a ponta do iceberg. Porque debaixo dele, está a causa; e a causa é um sistema socioeconómico mau e injusto, porque dentro de um sistema económico, dentro de tudo, dentro do mundo – falando do problema ecológico –, dentro da sociedade socioeconómica, dentro da política, o centro tem de ser sempre a pessoa. E o sistema económico dominante, hoje em dia, descentrou a pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo da moda. Ou seja, há estatísticas, não me recordo bem (isto não é exato e posso equivocar-me), mas 17% da população mundial detém 80% das riquezas». Os valores no essencial são de facto esses, apesar de os últimos anos terem conhecido um agravamento das desigualdades… De facto, não podemos esquecer o que a encíclica «Caritas in Veritate» diz sobre as raízes da crise financeira e em relação à necessidade de cuidar da justiça distributiva e da defesa do bem comum. E nesta linha de pensamento o Papa volta a falar dos jovens e do grave problema do desemprego que os atinge violentamente: «o importante é que hoje se dê, aos jovens que não têm trabalho, uma educação de emergência sobre algum ofício que lhes permita ganhar a vida». De que fala o Papa Francisco? De uma questão de índole sistémica. Não se trata de recuar no objetivo da Educação para todos, mas de compreender que este obriga a que haja diversidade de percursos, para impedir a exclusão e assegurar não só a igualdade de oportunidades, mas também a correção das desigualdades. A espiritualidade obriga ao compromisso da dignidade humana para todos.


foto por L’Osservatore Romano