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Pe. Alexandre Palma
Misericórdia: arte pobre
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Por meados da década de 60, um grupo de artistas italianos iniciava um movimento que viria a ficar conhecido como arte povera. Este nome resultava, sobretudo, da eleição de materiais considerados pobres para as suas obras. Essa opção entrava em intencional contraste com a clássica presunção de que apenas os materiais nobres seriam aptos a exprimir a beleza e a verdade e a dar forma ao sentir do artista. Ao trazer para o interior da arte materiais comuns, a arte povera contestava ainda a ideia de que a arte ocupa um lugar especial. Bem pelo contrário, ao fazê-lo ela não apenas trazia para a arte o nosso quotidiano, mas também trazia a arte para a vida de todos os dias.

Já em pleno ano da misericórdia, julgo que precisamos de ensaiar uma operação semelhante. Com demasiada frequência, deixamo-nos convencer de que só a perfeição pode testemunhar o Evangelho. Quantas vezes não sucede precisamente o contrário? O Evangelho pede (também) uma arte pobre. Ele não se vive e testemunha apenas com a nossa nobreza, mas também com a nossa pobreza. O franco reconhecimento da pobreza com que o vivemos em nada diminui a beleza e a verdade do cristianismo, antes o reveste de uma autenticidade que desperta um interesse sincero. Nada quero retirar à saudável procura de perfeição, mesmo se a sabemos inalcançável. Importa, contudo, reconhecer que a água viva da palavra evangélica não passa apenas através da nobreza dos nossos gestos, mas também pela pobreza que experimentamos em nós e na nossa vida. Essa versão perfeccionista do cristão tem, não poucas vezes, o efeito perverso de consolidar um olhar moralista sobre o cristianismo. Como se este fosse para um conjunto de eleitos, tão irreais quanto distantes da verdade do que somos e vivemos. E mais grave ainda, afastando porventura os que ainda olham para o cristianismo à procura de algo que lhes levante o olhar, sem contudo os esmagar com o mito da perfeição. O testemunho da imperfeição é pois, ainda que de forma paradoxal, essa arte pobre que nos devolve a vida e o Evangelho de forma genuína.

Tudo isto tem um óbvio lugar de concretização: o perdão. Penso, sobretudo, no perdão pedido e não tanto no perdão concedido. Pedir perdão é, sem sombra de dúvidas, um dos gestos com maior força evangelizadora. Ele é, sobremaneira, uma obra de arte pobre, feita com o comum material das nossas falhas. E a falha é, precisamente, aquilo que permite que um raio de luz passe e ilumine, que um pouco de ar passe e oxigene. Isto mesmo se encontra superiormente expresso nos quadros de Lucio Fontana, artista que poderá ser também associado à arte povera. Em vez de os embelezar com a perfeição das representações ou com a nobreza dos materiais, Fontana inseria vigorosos rasgões nas telas. Representava assim a beleza e a verdade da falha, do defeito, da imperfeição. Porque então, os seus quadros, tornavam possível ver mais além, para lá da tela, através da falha. Nada de muito diferente do que há-de querer o cristão: que o seu próximo veja mais além, para lá de si, através das suas falhas.