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P. Manuel Barbosa, scj
Incómodos e próximos
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Incómodos e próximos: esta titulação tem a ver com a misericórdia, nas suas obras, em particular a sexta espiritual que nos convoca a sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; tem a ver com a evangélica parábola do samaritano, qual resposta de Jesus a quem pretendia saber quem é o próximo; tem a ver com a mensagem que o superior geral da congregação religiosa a que pertenço nos ofereceu recentemente, convidando-nos a olhar o outro como caminho de misericórdia.

Ainda em tempo de quaresma, já a entrar na Semana Santa e sempre na vivência jubilar da misericórdia, pareceu-me pertinente partilhar alguns elementos dessa missiva escrita pelo padre Heiner Wilmer, sucessor do atual bispo de Setúbal na orientação da minha congregação, em apelações inspiradas no Evangelho e em sentidas palavras do Padre Leão Dehon.

Sendo a misericórdia negação da fraternidade humana e evangélica, e contrária à indiferença, ela só pode ser percebida e vivida na relação e na convivência, a caminho e em companhia, na aceitação da diferença do próximo, na mútua e fecunda incomodidade entre próximos. A misericórdia, que assenta em corações mansos e pacientes, nunca será compatível com corações empedernidos e entorpecidos. No dizer do Padre Dehon:

«É a dureza de coração que nasce do amor desregrado a nós mesmos, porque este amor naturalmente faz que sejamos sensíveis apenas aos nossos interesses, e que nada nos emocione senão o que nos diz respeito, que vejamos as ofensas a Deus sem chorar, e as misérias do próximo sem compaixão; e que não queiramos incomodar-nos para ajudar os outros, que não possamos suportar os defeitos, que nos aborreçamos com eles pelas mais pequenas razões, e que guardemos contra eles no coração sentimentos de azedume e de vingança, de ódio e de antipatia».

A nova lógica do coração transporta a marca da caridade para suportar os próximos e do grande amor a Cristo para carregar a sua cruz. Só assim se vislumbra a suportação paciente, contrária à falta de paciência, nas quotidianas cruzes da nossa existência. Ainda o Padre Dehon a nos provocar: «Que cruzes são estas? Encontramo-las em todos os estados, no claustro e na família, onde quer que haja deveres a cumprir, regulamentos de vida a observar, carateres diferentes do nosso para suportar».

Somos incómodos para os outros, que são próximos? Compreendamos como somos por dentro, reparemos em nós mesmos. Em vez de olharmos, e julgarmos, as mulheres adúlteras ou os considerados impuros e pecadores, acolhamos o convite de Jesus para olhar o nosso interior antes de atirar a pedra. Talvez percebamos que a pedra a arremessar não está na mão mas no nosso coração que incomoda os outros e precisa de purificação e transformação, enfim, da perene conversão.

Os outros são incómodos para nós, todos próximos uns dos outros? Os tais que estão na nossa casa, na comunidade cristã ou religiosa, nos lugares e situações comumente habitados, nos pobres e samaritanos que importunam e incomodam? Aceitemo-los como são, caminhemos juntos em companhia, apenas no ser e estar; isso é bem cuidar do ponto de partida.

Ainda um naco da tal carta, mesmo a encerrar: «Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo (as pessoas incómodas), é a obra de misericórdia que, enquanto virtude ativa e fecunda emanada da caridade de Deus, nos faz captar o amor para com o inimigo, realiza uma abertura de futuro para o outro, confirma a confiança nele, luta juntamente com ele, por ele e não contra ele. Suportar livremente, pacientemente, com caridade o próximo nas suas contradições e aspetos negativos, coloca-nos da parte de Deus. É esta a primeira marca do Deus da misericórdia em nós».

Votos de abençoada Semana Santa, no acolhimento do Grande Incómodo que nos inquieta e pacifica, o tal Cristo sempre próximo e íntimo do que somos no existir!