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Pe. Alexandre Palma
Mudar de crenças – Mudar de mapas
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Há na obra do escritor Gonçalo M. Tavares dois diálogos notáveis que fazem pensar. Cumprem assim o que me parece ser a sua intenção. Ambos podem ser encontrados na obra: O Torcicologologista, Excelência (Caminho 2015).

Em «Crença e Tecnologia», os personagens conversam acerca das máquinas que inventamos (tema tão caro a Gonçalo M. Tavares: a tecnologia), para logo concluírem que «só fazemos máquinas para estudar aquilo em que acreditamos». No caso, discute-se acerca da invenção de máquinas que indiquem a posição dos pássaros. Invenção justificada, pois não se duvida da existência de pássaros. Mas discute-se ainda a propósito de máquinas que determinem a posição dos anjos. Destas nem se pensa construir por não se crer que os anjos existam. O resultado é provocatoriamente assim descrito: «como não se acredita em anjos não se constroem máquinas para os detectar, e como não se constroem máquinas para detectar a posição dos anjos nunca se detectarão anjos e assim nunca se acreditará neles e assim nunca se construirão máquinas para os detectar porque não se acredita que eles existam». O ciclo vicioso é brilhantemente posto a nu. Daí a admonição conclusiva: «Caro século XXI: não mudes apenas de máquinas, muda também de crenças […]; se não o fizeres estarás sempre a descobrir a mesma coisa». Mudar de crenças, mais do que de instrumentos, é, em síntese, aquilo que se exige a quem não quiser apenas descobrir aquilo que já descobriu.

No outro diálogo – «Os mapas certos e as cidades erradas e vice-versa» – tudo gira em volta de mapas. Primeiro, conversa-se acerca de um homem que visita uma cidade, mas que perde o mapa que o havia de guiar nessa descoberta. Conjectura-se o que sucederia caso esse homem passasse todo o tempo de que dispunha a olhar para o chão, procurando pela cidade o mapa que o haveria de orientar por ela. Obviamente, nada veria dessa cidade que pretendia visitar. Só aparentemente se está a falar de mapas, de cidades e de turistas. Está-se a falar metaforicamente da vida: «estar vivo é estar perdido a procurar o mapa que nos orienta na vida». Mas o diálogo prossegue e nele levanta-se ainda outra possibilidade bizarra: alguém que visita uma cidade com um mapa errado, com um mapa de uma outra cidade. Aquilo que o autor considera «uma forma original de estar perdido». Esse equívoco, contudo, não deixa de ter paradoxalmente uma vantagem: «quem andar assim pelas cidades descobrirá os mais fabulosos recantos e segredos. […] Só assim se encontrará o que ninguém encontraria».

Não sei se a provocação inteligente do autor colhe junto de todos os leitores. Ora por justa prudência ora simplesmente por resistência temerosa, não falta quem desconfie de todo e qualquer apelo à mudança. Percebo isso. Mas julgo que vale mesmo a pena «mudar de crenças». Julgo que, no mínimo, vale a pena repensar as lógicas das nossas procuras. Não porque forçosamente estejam erradas. Simplesmente para não «estarmos sempre a descobrir a mesma coisa» fechando-nos assim à perene surpresa da vida e, para quem crê, do próprio Deus. Julgo que vale mesmo a pena não perder a cidade por causa do mapa. Mudar de mapa pode mesmo ser a forma de chegar a esses seus «fabulosos recantos e segredos» que até então nos estavam ocultos.

Mas deixemos falar os textos. Só isso aqui me interessa. Não os quero asfixiar com explicações, nem lhes quero arredondar as arestas. Em tempo de «Feira do Livro», agradeço ao autor estes textos e a estimulante reflexão que eles iniciam. A sua frescura é uma dádiva inestimável.