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Pe. Alexandre Palma
É proibido proibir proibir
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Lembro-me de, ainda em criança, encontrar lá por casa um álbum, colectânea de música brasileira, intitulado: É proibido proibir. Desse tempo, ficou-me no gosto a M(úsica) P(opular) B(rasileira) e na memória esse título provocador. Só anos mais tarde vim a descobrir que esse era um velho slogan do Maio de 68, grafitado pelas paredes de Paris. Assim se fazia ecoar o grito de revolta contra a velha sociedade e se celebrava a liberdade, cuja elevação a princípio supremo explica muito da forma como as sociedades ocidentais têm evoluído desde então.

Foi o psicodrama deste Verão que me fez revisitar estas memórias. Falo da proibição do uso do burkini em algumas praias francesas. Confesso a minha incompetência na matéria. Desconhecia a existência de tal peça de vestuário. Além disso, resisto a juntar-me àqueles que, quais pretendentes a polícias da moda, se entretêm a opinar com paixão acerca da indumentária de outros. Mas também não posso passar totalmente ao lado do que este bizarro episódio estival põe a nu. Sim, porque não me interessa tanto o caso em si quanto o que ele revela. E é aí que entra a descrita memória de infância. Como não notar a contradição desta proibição acontecer, precisamente, na pátria do «é proibido proibir»? Não foi, precisamente, esta liberdade individual isenta de proibições que criou toda a sorte de vestuário balnear: fatos de banho de toda a forma e feitio, de todas as cores e padrões, para homens e para mulheres, além de monokinis, bikinis, trikinis, burkinis, tangas, sungas e mesmo vestuário nenhum?

Tudo isto parece ser (mais um) sintoma de uma sociedade cansada de si própria e já descrente do que outrora abraçou com entusiasmo. E se esse sintoma, como tantas vezes ao longo da história, se revelou agora em França, o desnorte que a causa encontra-se disseminado pela Europa. Nada disto, é certo, acontece à margem de uma sociedade ferida pelo terror mais injustificável; nem do oportunismo político que corre para as eleições presidenciais francesas, marcadas para o próximo ano; nem, sequer, de um efectivo problema com o islamismo radical, a que discursos meramente bem-intencionados já não satisfazem como resposta. Mas, na sua essência, é ainda a questão da liberdade que aqui está em jogo. E se estes anos pós-68 mostraram como o primado da liberdade individual expõe as sociedades e os indivíduos a uma intensa fragmentação, o que episódios como este demonstram é que as tentativas de controlo dessa liberdade são palco fértil para todas as arbitrariedades e fermento de conflitos estéreis. Despeçamo-nos de ilusões: a solução dos riscos da liberdade não está na cedência à irritação que o seu (ab)uso por vezes gera. Volvidos tantos pequenos e grandes dramas, melhor seria que percebêssemos que a melhor forma de ultrapassar a estafada dialéctica entre tudo controlar ou tudo permitir não passa nem por proibições nem por proibir proibições, mas pela formação da consciência.