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P. Manuel Barbosa, scj
De miseráveis a misericordiosos...
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No encerramento do Ano Santo da Misericórdia, o Papa Francisco oferece-nos a Carta Apostólica «Misericordia et misera», usando esta expressão latina de Santo Agostinho para exprimir o encontro da mulher adúltera (misera) com Jesus (misericordia). Como afirma na breve introdução, o ensinamento deste encontro «indica o caminho que somos chamados a percorrer no futuro». Um caminho de vida centrada em Jesus Cristo, que transforma a nossa miséria em misericórdia. Somos chamados a esta contínua transformação de miseráveis em misericordiosos, mesmo sabendo que nesta peregrinação terrena não chegaremos plenamente à meta definitiva.

Não pretendo aqui resumir o que o Papa nos diz nos 22 números do texto, que pretende avaliar o que se passou ao longo desta Jubileu Extraordinário, com um olhar projetado no futuro. Desejo realçar apenas três dinamismos inerentes à misericórdia: dimensão infinita, marca da alegria, caráter social.

A misericórdia de Deus tem uma dimensão infinita, eterna. Não há leis que possam condicionar a misericórdia. Nada pode ser entreposto entre a miséria do pecado do homem e a misericórdia do amor de Deus. Nenhum obstáculo se deve colocar entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus. Isso acontece no quotidiano da vida cristã e no que aparece de forma mais extraordinária. Aqui se insere a decisão do Papa em continuar a conceder aos sacerdotes a faculdade de absolver todas as pessoas que incorreram no pecado do aborto. É pecado grave, mas a salvação infinita de Deus é muito maior. Vale mais a graça que a norma.

Este dinamismo da infinita misericórdia perpassa toda a reflexão do Papa Francisco. Longe de nos comandar, exige um caminho de vida em contínua renovação, na fidelidade ao único Senhor da Misericórdia, que nos extirpa dos miserabilismos em que andamos para nos abundar com o seu fecundo amor.

A misericórdia de Deus enche-nos de alegria e festa, de bondade e ternura, de perdão e compaixão, porque assim é em si mesma para nós. Não resisto a transcrever este belo naco sobre a alegria como marca da misericórdia: «Há necessidade de testemunhas de esperança e de alegria verdadeira, para expulsar as quimeras que prometem uma felicidade fácil com paraísos artificiais. O vazio profundo de tanta gente pode ser preenchido pela esperança que trazemos no coração e pela alegria que brota dela. Há tanta necessidade de reconhecer a alegria que se revela no coração tocado pela misericórdia!» (n.º 3). Também não é por acaso que o Papa Francisco tem pautado duas exortações, já no seu título, com o cunho da alegria: «alegria (gaudium) do Evangelho» e «alegria (laetitia) do amor».

A misericórdia de Deus tem um caráter intrinsecamente social. Daí não podermos ficar passivos, indiferentes e hipócritas perante os dramas que estão mesmo ao nosso lado, na sociedade em que vivemos, até nas nossas famílias e comunidades. A misericórdia exige olhar atento e compromisso solidário para que todos, sem exceção, tenham vida digna. Para sinalizar este constante dinamismo, o Papa instituiu o Dia Mundial dos Pobres para o 33.º Domingo do Tempo Comum, «um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa... Além disso, este Dia procurará renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia» [n.º 21).

O Jubileu concluiu-se. Agora é tempo de olhar em frente «para compreender como se pode continuar, com fidelidade, alegria e entusiasmo, a experimentar a riqueza da misericórdia divina» [n.º 5). Nunca deixaremos totalmente de ser miseráveis no sentido da miséria do nosso pecado. Isso faz parte da nossa peregrinação crente. Mas ao mesmo tempo, e muito mais, somos chamados a ser sempre misericordiosos, porque habitados pela infinita misericórdia de Deus que derramou todo o seu amor no nosso coração. O tempo da misericórdia continua...