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Hermínio Rico sj*
A exigente beleza de Silêncio
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Depois de 26 anos de esforços, Martin Scorsese apresenta-nos agora o filme Silêncio. Leu a novela de Shusako Endo durante uma viagem ao Japão, em 1989, e não mais esqueceu o projeto. Ao católico italo-americano, criado num bairro pobre e violento de Nova Iorque, Silêncio oferecia uma ilustração fascinante da grande luta humana entre a fé e a dúvida, entre a fragilidade e a fidelidade.

A base histórica é a violenta perseguição dos cristãos no Japão da primeira metade do século XVII. S. Francisco Xavier chegou ali em 1549. Rapidamente as conversões ao cristianismo se tornaram numerosas. Esta primeira evangelização, continuada pelo P. Camilo de Torres, com muita sensibilidade para a alma japonesa, e, a partir de 1579, estruturada pela capacidade de organização do P. Alessandro Valignano, deu grandes frutos. Em 1600, havia cerca de 150 jesuítas a trabalhar no Japão, grande número deles japoneses.

Mas os desejos de afirmação nacionalista do novo poder unificado lançavam desconfiança sobre os missionários estrangeiros. Em 1587, é decretado o primeiro exílio dos jesuítas, que acabou por nunca ser cumprido. Em 1597, 26 mártires são executados por ordem arbitrária de Hideyoshi, primeiro senhor absoluto de todo o Japão. Finalmente, em 1614, dá-se a expulsão de todos os missionários e começa uma campanha para aniquilar o cristianismo. Eram, por esta altura, cerca de 300 000 os cristãos japoneses.

Um pequeno grupo de jesuítas ficou secretamente no país, e as comunidades cristãs, vivendo em dissimulação, organizaram-se clandestinamente para manterem viva a sua fé. Em 1633, dá-se o grande choque, quando o Provincial jesuíta, o P. Cristóvão Ferreira, sujeito a tortura, apostatou publicamente. A notícia correu mundo e vários jesuítas regressaram clandestinamente ao Japão para o procurar. É inspirado numa dessas expedições que a novela ficciona o personagem Sebastião Rodrigues, jesuíta português. Acolhido pelos cristãos escondidos, rapidamente é preso. O filme conta o seu drama interior, dividido entre a fidelidade à sua fé e a compaixão pelos cristãos cuja tortura era obrigado a presenciar: as suas vidas seriam poupadas se ele fizesse um gesto público de apostasia. Pode a lealdade para com Deus aparecer em contradição com a compaixão pelas pessoas? Qual deve prevalecer?

Os atores prepararam-se cuidadosamente para encarnar os seus papéis. Visitaram Portugal, particularmente os antigos colégios onde estes padres se teriam formado, familiarizando-se com a vida dos jesuítas do tempo. E os dois atores principais fizeram mesmo a experiência dos Exercícios Espirituais de S. Inácio. O jesuíta americano James Martin serviu de consultor durante todo o processo de conceção do filme. Assim, as questões que o filme levanta são profundas e pertinentes e a representação do agir e do pensar dos jesuítas é fiel. O génio de Scorsese acrescenta à história uma grande beleza e uma exigente, mas equilibrada, carga emocional. Um filme que não será fácil de sentir e de pensar, mas muito merecedor de atenção.

 

* in www.jesuitas.pt