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Guilherme d’Oliveira Martins
Confiança versus mal-estar
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Ainda não se apagaram os ecos sobre os diferentes pontos de vista suscitados pelo filme «Silêncio». De facto, o tema crucial da obra de Scorsese é o das barreiras culturais entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. Shusaku Endo assumiu claramente essa tensão, essa dualidade e esse paradoxo, o que levou, aliás, a que o romance tenha sido recebido com reticências pelos cristãos japoneses, logo em 1966. Se virmos bem, muitas das dúvidas agora suscitadas pelo filme têm a ver com o mesmo problema. O tema fundamental talvez seja, por isso, menos o da apostasia, e mais o da ligação íntima e humana das três virtudes teologais – fé, esperança e amor. De facto, há uma história complexa de permanência do cristianismo no Japão, começada na surpreendente expansão inicial e continuada numa reação política violenta, que não conseguiu apagar todos os vestígios dessa inesperada propagação… O fenómeno dos cristãos japoneses escondidos é tão impressionante quanto o dos mártires. São faces da mesma moeda. No fundo, a sementeira cristã alimentou-se da convergência desses fatores…

A «Brotéria» publicou há pouco a entrevista dada pelo Papa Francisco por ocasião da viagem apostólica à Suécia (volume 183, 5-6, Novembro - Dezembro de 2016). Aí se tocam alguns temas que interessam a um debate mais amplo. O Sumo Pontífice fala do proselitismo e afirma-nos que «no campo eclesial é pecado». E cita o Papa Emérito Bento XVI, que nos disse «que a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração. O proselitismo é uma atitude pecaminosa. Seria como transformar a Igreja numa organização. Falar, rezar, trabalhar juntos: esse é o caminho que devemos fazer». Está em causa o diálogo ecuménico e nos dias de hoje essa atitude tem de ser assumida com todas as consequências. Falando dos cristãos vítimas de perseguição, de violência e intolerância, o Papa recorda o que designa como «ecumenismo de sangue», em que os mártires são católicos, luteranos, calvinistas, anglicanos e ortodoxos… Afinal, é o tema de liberdade religiosa que merece ponderação, referindo-se a todas as atitudes respeitantes à liberdade de consciência, que o Concílio Vaticano II especialmente destacou. E o Papa conta uma pequena história: «No almoço que tive em Cracóvia com alguns jovens, um deles perguntou-me: ‘O que devo dizer a um amigo meu que não acredita em Deus? Como faço para o converter?’. Eu respondi-lhe: ‘A última coisa que deves fazer é dizer alguma coisa. Age! Vive! Depois, diante da tua vida, do teu testemunho, talvez o outro te vá perguntar por que vives assim?’ Estou convencido de que quem não crê ou não procura Deus talvez não tenha sentido a inquietação de um testemunho».

Mas o Papa Francisco fala também de uma grave doença social dos dias de hoje – a idolatria. Cláudio Magris considera-a o grande perigo para as sociedades humanas. Todas as idolatrias são perniciosas, e surgem do vazio religioso e espiritual: «há idolatrias ligadas à religião; a idolatria do dinheiro, das inimizades, do espaço superior ao tempo, da cobiça da territorialidade do espaço. Há a idolatria da conquista do espaço, do domínio que ataca as religiões como um vírus maligno. E a idolatria é uma falsa religião, é um fingimento de religião. É uma religiosidade errada. Chamo-a ‘uma transcendência iminente’, isto é, uma contradição». Em lugar do «desenvolvimento da capacidade que o homem tem de se transcender rumo ao absoluto», estamos perante uma fuga, uma perversão. A violência que tantas vezes se mascara de falsa religião decorre dessa idolatria tremenda, que leva os extremos fundamentalistas a tocarem-se…

E ainda neste diálogo muito rico, o Papa Francisco responde à pergunta: «Quem é Jesus para Jorge Maria Bergoglio?». «Jesus para mim é Aquele que me olhou com misericórdia e me salvou. A minha relação com Ele tem sempre este princípio e fundamento. Jesus deu sentido à minha vida aqui na terra, e esperança para a vida futura». De novo, como nos outros pontos da entrevista, deparamo-nos com os temas do testemunho e do exemplo, do caminho e da vida. E o Papa tem-se preocupado em abrir novos horizontes, não por uma questão de moda ou de circunstância – mas como resposta ao evidente mal-estar que se vive no mundo contemporâneo e que tem determinado uma perigosa tendência para o egoísmo, a fragmentação, o populismo, a construção de muros e barreiras invisíveis, os discursos fechados e triunfalistas… O diálogo parece ter-se tornado incómodo. O valor da imperfeição e da perfetibilidade torna-se pouco importante. Nos vários temas da crónica de hoje, há um fio de Ariane a ligar estas palavras, e ele é o de que a compreensão dos limites obriga a encontrarmo-nos e a encontrar os outros. Olhos nos olhos temos de entender que o medo das diferenças, obriga a cultivarmos a confiança…