Artigos |
Guilherme d’Oliveira Martins
Entre culturas e religiões
<<
1/
>>
Imagem

Quando Jesus passou por Sicar, cidade da Samaria, e se sentou fatigado à beira do Poço de Jacob, por volta da hora sexta, chegou uma mulher da Samaria para tirar água – e, com surpresa dela, pediu-lhe: «Dá-Me de beber». A mulher reagiu como se esperaria: «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?» De facto, os judeus não se davam com os samaritanos. A resposta foi desconcertante – «Se conhecesses o dom de Deus e Quem é Aquele que te diz: Dá-me de beber; tu é que Lhe terias pedido, e Ele dar-te-ia água viva»… Conhecemos o diálogo que se desenrolou a partir daí. Quando os discípulos voltaram, admiraram-se por o Mestre estar a falar com aquela mulher. E esta, deixando a bilha, foi à cidade dizer aos homens, para virem ver Alguém que lhe tinha dito tudo quanto fizera. «Não será Ele o Messias?». O certo é que muitos samaritanos daquela cidade acreditaram n’Ele. E, ao ouvi-Lo, muitos mais acreditaram – «nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo»…

O episódio ainda nos enche de admiração nos dias de hoje. Apesar de ser bastante conhecido, é estranho e inesperado. Aquele momento, na hora sexta, junto do Poço de Jacob continua a dar muito que pensar. Quantas vezes nos damos conta de que o mais difícil é ir ao encontro de quem menos se espera que nós acolhamos. Pode dizer-se que aquela conversa foi tudo menos conveniente. Dir-se-á mesmo que foi perigosa. E estamos lembrados da parábola de outro samaritano, que foi o único a compreender e a responder à pergunta – «Quem é o teu próximo?». Não é por acaso que temos estas referências a samaritanos. Exatamente porque «os judeus não se davam com eles». Ora, nos dias que correm, não podemos esquecer o porquê do encontro no Poço de Jacob, do mesmo modo que da ida do Papa Francisco a Lampedusa. Estas atitudes têm de estar vivas nas nossas lembranças. No entanto, ao contrário do que se esperaria, muitos continuam a não compreender como é importante privilegiar a hospitalidade em lugar da hostilidade (duas palavras antagónicas, com a mesma origem semântica). Um pouco por toda a parte prevalece o medo do Outro. E continua a evitar-se o encontro do Poço de Jacob – não compreendendo a razão de ser dele… Certos discursos políticos acenam com a ameaça do outro, seja migrante ou refugiado. O problema deve ser encarado com coragem, sem iludi-lo, pondo a ênfase no desenvolvimento como novo nome da paz. Relendo a encíclica de S. João XXIII «Pacem in Terris» vemos que os desafios fundamentais aí apresentados estão por responder…    

Não basta, de facto, falar de diálogo entre culturas e religiões, é preciso que o mesmo seja informado e conhecedor, o que exige um convívio tolerante, uma abertura à memória histórica do Outro. Devemos, pois, colocar-nos, tanto quanto possível, no lugar do outro, a fim de tornar o diálogo uma verdadeira troca ou partilha de experiências. Muitas vezes fala-se de diálogo puramente formal, mas não podemos satisfazer-nos com essa perspetiva pobre e redutora. Olhamos em volta e verificamos que há uma multiplicação de monólogos que não se encontram e que não envolvem uma autêntica troca de experiências e de argumentos. As identidades fechadas sobre si mesmas constituem exemplos perigosos de monólogos autossuficientes, que não se enriquecem mutuamente e que tendem para o empobrecimento e a decadência. Veja-se o Mediterrâneo com a sua extraordinária riqueza histórica (e ligação ao Oriente), onde hoje há conflitos insanáveis baseados na incompreensão, no egoísmo, na superioridade, na indiferença e na recusa da valorização da riqueza das diferenças e das complementaridades.

Temos de entender que, por exemplo, a identidade mediterrânica é multiforme e complexa, pressupondo uma partilha e uma construção comum, a partir de diferenças religiosas, culturais e étnicas. Nesse sentido, há um desafio a que todos somos chamados: de compreensão mútua, de justiça distributiva, de cooperação para o desenvolvimento e de abertura de espírito para o diálogo. Os cristãos do Médio Oriente merecem uma atenção especial, inerente à liberdade religiosa, à riqueza cultural e histórica e ao papel que desempenham no mundo árabe. O diálogo moderno das religiões do Mediterrâneo Oriental merece cuidada atenção, não podendo esquecer-se a influência das ramificações cristãs, anteriores ao surgimento do Islão, reveladora da riqueza e diversidade das culturas árabes. O desafio da presença cristã no mundo árabe, designadamente dos cristãos coptas, não se circunscreve à componente religiosa, abrangendo necessariamente o combate social, solidário e político no sentido da laicidade e da cidadania. Um diálogo autêntico é urgente!