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O Cordeiro do Apocalipse
«Chave hermenêutica» da Páscoa Cristã
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O Cordeiro é uma figura (ou imagem, se preferirmos) que imediatamente associamos à Páscoa. Em muitas das mesas pascais por esse país fora, a ementa não dispensa o tradicional cordeiro (ou cabrito), bem regado com o «fruto da videira e do trabalho do Homem» que o nosso país oferece em tanta (e tão boa) abundância. Na Eucaristia, antes da comunhão, reconhecemos Aquele que se (re)parte no pão como o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo». Durante as celebrações do Tríduo Pascal, centro da vida litúrgica da Igreja, o Cordeiro é figura central. Na Quinta-feira Santa, é o animal do qual, depois de imolado, se extrai o sangue para espalhar nos dois umbrais e na padieira da porta das casas dos judeus e que serve como sinal de preservação da vida à passagem (Páscoa) do Senhor, iniciando o processo exodal e de identidade de povo consagrado (Ex 12 – primeira leitura da Missa da Ceia do Senhor); em Sexta-feira Santa, é o Servo de Yhwh «levado como cordeiro para o matadouro», mas através do qual fomos curados nas suas chagas (Is 53 – primeira leitura da Celebração da Paixão do Senhor); na solene Vigília Pascal, ele é o elemento que falta para o holocausto que Abraão deve oferecer a Deus e que, mediante a fé, providentemente aparece para ser oferecido em lugar de seu filho Isaac (Gen 22 – segunda leitura); no Domingo de Páscoa, ele é Cristo, o Cordeiro pascal imolado (1 Cor 5 – segunda leitura) e Aquele que, sendo inocente, resgatou as ovelhas e reconciliou com o Pai os pecadores (Sequência Pascal).

A partir da liturgia católica, percebe-se claramente que o Cordeiro foi adoptado como um símbolo por excelência para ilustrar a morte de Cristo. Associado ao sacrifício de Abraão, Cristo surge como o verdadeiro Cordeiro que se oferece em sacrifício; ligado ao livro do Êxodo, Cristo é identificado como a ‘nova’ Páscoa para os cristãos, aquele que determina e permite o autêntico êxodo face à escravidão (do pecado); na interpretação de Isaías, Cristo surge como o Servo que se faz obediente até à morte (e morte de cruz, segundo a linguagem de S. Paulo); na perspectiva paulina de 1Cor 5, Cristo é o Cordeiro que, no Seu sangue, redime e reconcilia com o Pai toda a humanidade. Porém, e apesar de todas estas serem perspectivas bastante válidas, encerra a visão do Cordeiro na sua vertente sacrificial: Cristo havia sido morto à mesma hora em que os cordeiros eram oferecidos no Templo em holocausto. Foi esta associação cronológica que se tornou teológica, e que fez ampliar o campo semântico do Cordeiro na sua relação com Jesus-Messias. Nesse sentido, proponho a leitura joanina do Cordeiro como aquela que melhor exprime esta identidade Cordeiro-Cristo em toda a amplitude do mistério pascal: paixão, morte, ressurreição e glorificação.

O livro do Apocalipse é aquele que melhor explora esta imagem, sobretudo nos capítulos 4-6. Se no IV Evangelho (Jo 1,29.36), nos Actos dos Apóstolos (Act 8,32) e na 1ª carta de Pedro (1Pe 1,19), o uso da palavra «cordeiro» (que em grego vem definido como «ἀμνὸς», ‘amnós) ainda vem carregada de teor sacrificial e de sabor veterotestamentário (basta pensar que a partir da sua raíz aramaica, a expressão joanina colocada na boca de João Baptista «Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» poderia ser traduzida por «Eis o servo de Deus…»), no último livro bíblico do cânone cristão prevalece uma ‘cristificação’ do Cordeiro a partir da senhoria que se reconhece a Cristo à luz do Seu mistério pascal. Apesar de conservar o tema de Cristo como Cordeiro pascal (Ap 5,9ss), a sua essência é expandida a partir da realidade central da ressurreição, da ambiguidade entre a fragilidade de um cordeiro imolado e a ‘potência’ que a sua subida ao céu lhe confere enquanto Senhor e Redentor do mundo. Esta mudança de perspectiva inicia-se pela mudança do termo usado: o «ἀμνὸς» dá origem ao «ἀρνίον», ‘arníon. Das 30 vezes em que este termo é usado no Novo Testamento, 29 ocorrem no livro do Apocalipse. Mas, afinal, quem é este ‘arníon para o autor do livro do Apocalipse e que relação tem com a Páscoa?

Esta figura complexa surge explicitamente referida pela primeira vez em Ap 5,6, tendo o autor procedido a uma descrição pormenorizada do seu aspecto. Nos primeiros 4 versículos deste capítulo (Ap 5,1-4), a comunidade para quem o autor se dirige (entrevê-se, claramente, um enquadramento litúrgico em toda a cena) é confrontada com a apresentação de um livro em forma de ‘rolo’ (biblion), o qual contém em si toda a história da humanidade e os decretos divinos nela codificados. Sete selos colocam um sigilo sobre este ‘segredo’ reservado acerca do sentido dos acontecimentos presentes (e futuros) da vida de cada um. Este livro transporta em si o plano criador (visão cósmica) e salvífico (visão soteriológica) de Deus sobre a história, e é descrito como inacessível (Ap 5,3), pois pertence à dimensão da transcendência divina. É o quadro de uma humanidade que não se sabe orientar na vida, que não encontra o seu sentido, que não atina com os seus caminhos (Ap 5,4). É neste contexto de aparente desorientação que surge a figura do Cordeiro, que é visto «de pé, como que imolado. Tinha sete chifres e sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra» (Ap 5,6). Juntamente com ele, no Trono, «os quatro Viventes e os Anciãos».

Nota-se neste quadro um alargamento do horizonte semântico: Jesus não é somente o libertador que morre, Aquele que liberta dos pecados através do sacrifício da própria vida (como o Servo de Deus deutero-isaiano), mas enquanto Ressuscitado é Aquele que assume o papel de intérprete cósmico e universal da história humana. É precisamente nesta unidade morte-ressurreição que o Cordeiro é Cristo: aparece em pé, como outrora aos discípulos depois da Páscoa, mas mantém intactos os sinais da Sua paixão e morte, sendo descrito como «imolado» (fazendo, por isso, eco da aparição do Ressuscitado em Jo 20,19-23). Vemos aqui consubstanciado um claro ritmo litúrgico-eucarístico, centrado na celebração unitária da morte e ressurreição de Cristo. E não será isso a Páscoa, a verdadeira Páscoa cristã que estamos prestes a celebrar? Não acolhemos nós em contexto litúrgico os efeitos da Sua ressurreição e ao mesmo tempo a Sua vitalidade, aquilo que é próprio da Sua paixão, ou seja, o perdão dos pecados? Não fazemos nós experiência da incapacidade de, por nós próprios, abrirmos a chave da nossa existência para a compreender e nela entrar, (re)descobrindo-nos a nós e a Deus?

Quando falamos de Cristo-Cordeiro, o Ressuscitado, como chave hermenêutica da Páscoa temos isto em mente: Cristo-Cordeiro é Aquele que já era preparado no Antigo Testamento, é Aquele que assume a centralidade no desenvolvimento na história da salvação e Aquele que, enquanto morto e ressuscitado, concede todos os dons obtidos com a Sua vitória sobre a morte, nomeadamente o grande dom pascal por excelência que é o Espírito Santo (a simbólica do sete e dos Espíritos de Deus a isso alude). Aos fiéis, à Igreja apoiada nos Quatro Viventes (quatro evangelistas?) e nos vinte e quatro Anciãos (12 tribos de Israel e 12 Apóstolos do Cordeiro = testemunho da história da salvação na sua globalidade), às comunidades joaninas (de hoje e de ontem) que vivem a realidade da perseguição e do martírio, nada mais resta senão transformar em «Eucaristia» (louvor) e em memória salvífica este selo (pedra) quebrado por um Cordeiro (Cristo) que abriu o livro (túmulo) e nos revelou o mistério mais profundo da humanidade, que é a vitória da Vida, agora acolhida e (com)partilhada:

 

«Digno és tu de receber o livro

E de abrir seus selos,

Pois foste imolado e, por teu sangue,

Resgatastes para Deus

Homens de toda a tribo, língua, povo e nação.

Deles fizeste, para o nosso Deus,

Um reino de sacerdotes;

E eles reinarão sobre a terra». (Ap 5,9-10)

 

texto pelo P. David Palatino

 

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Domingo de Ramos na Sé Patriarcal de Lisboa: Semana Santa sem “distrações”

 

O Cardeal-Patriarca de Lisboa apelou para uma vivência da Semana Santa sem “sentimentos fugazes e distrações periféricas”. Na homilia da celebração de Domingo de Ramos, no passado Domingo, 9 de abril, D. Manuel Clemente pediu que “continuemos ao lado de Jesus” durante os dias que antecedem o Domingo de Páscoa. “Sejamos coerentes e, semana fora, continuemos ao lado de Jesus. Acompanhemo-lo na Ceia e não saiamos para o entregar, como o Iscariotes. Estejamos com Ele no Getsémani e não adormeçamos nem fujamos, como fizeram os outros discípulos. Estejamos no pretório de Pilatos, e não gritemos “Crucifica-o!”, nem por palavras, nem por atos e omissões. Sigamos com Jesus até ao Gólgota, mas como o Cireneu, e ainda mais como as santas mulheres, que não O deixaram até ao fim”, apelou o Cardeal-Patriarca, no passado Domingo de Ramos.

Na celebração que decorreu na Sé de Lisboa e em que foi proclamado, como habitualmente, o Evangelho que narra a Paixão de Jesus Cristo, D. Manuel Clemente desafiou os cristãos a procurarem seguir o exemplo de Jesus na atenção ao outro, com “humildade” e maior “cuidado em corresponder-lhes”. “Viveremos esta semana em Lisboa, ou noutros sítios em paz. Paz pública, ao menos e ainda bem. Mas por dentro de cada casa, no seio de cada família ou grupo, há Jesus que chega e continua a humildade com que o faz. Aquele jumentinho em que vinha é hoje a simplicidade com que está, na humanidade de cada um, assim reconhecido ou ainda não.

Não sabemos quantos deram realmente por Jesus, quando entrou em Jerusalém. Mas sabemos decerto que mais disponibilidade para reparamos nos outros e mais cuidado em corresponder-lhes, serão agora os hossanas com que aclamaremos, os ramos que levantaremos, as capas que estenderemos”, sublinhou.

 

Um tempo para o essencial

Para o Cardeal-Patriarca de Lisboa, as aclamações (hossanas) escutadas no evangelho da celebração, quando Jesus entra na cidade santa, devem brotar também, hoje, “bem de dentro do coração convertido”. “Dirijamo-las a Jesus que passa, tanto em si mesmo, constante ‘Deus connosco’, como naqueles que nos esperam, outros tantos apelos de Deus. E quanto mais simples, comuns e correntes na circunstância dos dias que se seguem, mais se assemelharão a Jesus que prossegue, naquele jumentinho em que os seus pés tocavam certamente o chão. O chão de Jerusalém, o chão da nossa cidade agora”, descreveu D. Manuel Clemente que concluiu a homilia fazendo um apelo para que a Semana Santa não seja um tempo desaproveitado. “Uma semana para celebrar, uma semana para cumprir. Plena de Cristo nos outros e só assim ‘santa’, porque inteiramente de Deus. Não esvaziemos as palavras, nem desperdicemos o tempo. Não nos distraiamos de Deus, não nos distraiamos dos outros, nem, afinal, de nós. - É preciso que a Páscoa não chegue só no calendário!”, frisou.

texto por Filipe Teixeira

 

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Propostas de leitura, pelo Secretariado Nacional de Liturgia

O Tríduo Pascal

O aprofundamento do Mistério pascal é uma necessidade para aqueles que desejam descobrir sempre mais as raízes da sua fé. Se alguém quiser saciar-se de Deus, tem de voltar continuamente às fontes da salvação que brotaram do lado de Cristo aberto sobre a Cruz, e continuam a jorrar sobre o mundo depois da sua gloriosa Ressurreição. Este livro, que retoma as comunicações feitas num Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica dedicado ao Tríduo pascal, pode constituir uma oportunidade para esse aprofundamento e para a descoberta de caminhos de renovação pastoral, sempre tão necessária nas assembleias e comunidades cristãs, mas quase nunca perfeitamente conseguida.

 

Semana Santa

 A Semana Santa, em sentido estrito, compreende os últimos dias da Quaresma até ao início do Tríduo Pascal, iniciando-se com a “procissão de Ramos” no Domingo da Paixão do Senhor, que recorda a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, e com a Missa em que se lê a paixão segundo um dos Evangelhos sinópticos incluindo a “Missa Crismal” na Quinta-Feira Santa de manhã, celebrada pelo Bispo com o Presbitério e o Povo Santo de Deus na igreja Catedral. Todavia, em sentido alargado, envolve simultaneamente o Tríduo Pascal. A celebração do mistério pascal de Cristo, na sua totalidade, constitui o momento privilegiado do culto cristão, não só no seu desenvolvimento anual, mas quotidiano e semanal. O mistério pascal de Cristo é o princípio basilar de toda a reforma litúrgica.

 

O Tempo Pascal

O Tempo Pascal encerra grandes mistérios que a Igreja celebra e este subsídio pastoral analisa. A intensa oração da Igreja durante o Tempo Pascal merece uma reflexão e um estudo aprofundado do mistério pascal de Cristo ressuscitado. O Secretariado Nacional de Liturgia dedicou o IX Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica, em 1983, a esta temática: “A Celebração do Mistério Pascal: o Tempo Pascal”. O interesse por este assunto estendeu-se a quase todas as dioceses, que organizaram encontros diocesanos de pastoral litúrgica sobre esta temática. As duas edições das conferências do Encontro Nacional logo se esgotaram, mostrando assim o interesse eclesial destes assuntos. A pedido de muitos fiéis, situados sobretudo em grupos eclesiais com responsabilidades pastorais, apresentamos agora uma recolha de textos sobre o Tempo Pascal: conferências e artigos já publicados, mas revistos pelos autores e organizados de uma forma sistemática, em ordem a uma visão de conjunto. O conteúdo, o significado e a mensagem do Tempo Pascal são abordados com a profundidade que a Celebração do Mistério Pascal merece: uma linguagem tão teológica como pastoral, para se tornar acessível e útil a todos os fiéis.

 

Informações:

Secretariado Nacional de Liturgia

Casa de Santa Ana - Santuário de Fátima

Apartado 10, 2496-908 FÁTIMA

Telefone: 249533327

E-mail: secretariado@liturgia.pt

Site: http://livros.liturgia.pt

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