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Guilherme d’Oliveira Martins
Na Semana Maior do calendário…
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Esta é a Semana Maior do calendário cristão. Na nossa última crónica invocávamos a presença dos cristãos no Mediterrâneo Oriental. Tragicamente, recebemos a notícia da morte no Egito, em Tanta e em Alexandria, de mais de quatro dezenas de cristãos que celebravam o Domingo de Ramos. Recordamos o que dissemos em março: «Os cristãos do Médio Oriente merecem uma atenção especial, inerente à liberdade religiosa, à riqueza cultural e histórica e ao papel que desempenham no mundo árabe. O diálogo moderno das religiões do Mediterrâneo Oriental merece cuidada atenção, não podendo esquecer-se a influência das ramificações cristãs, anteriores ao surgimento do Islão, reveladora da riqueza e diversidade das culturas árabes». A melhor palavra do momento é Paz. É difícil dizê-la neste tempo – mas é a única. A escalada do ressentimento apenas gera a violência. A memória obriga a lembrar para que não se repita e a esquecer para que não haja sede de vingança.

O Padre Manuel Antunes escreveu, por ocasião da morte de Gabriel Marcel, em 1973, que o filósofo foi dos que melhor soube compreender o perigo da substituição progressiva e total do sagrado pelo profano, bem como das técnicas manipuladoras ou de lavagem aos cérebros de milhões e milhões de seres humanos. E salientava como lhe doía a vontade reducionista que via «nos princípios, nos métodos e nas estruturas das ideologias do seu tempo». Hoje, sentimos os efeitos dessa tendência. Eis o que está em causa. De facto, o vazio ético e espiritual gera a tentação do fanatismo – em lugar de favorecer o respeito mútuo, o pluralismo e a salvaguarda da liberdade de consciência. A indiferença gera a arbitrariedade, a simplificação abre caminho à intolerância. E lembrava o jesuíta português a emergência não do espírito de verdade, mas do mero espírito de verificação – «espírito não do primado dos fins mas da soberania absoluta dos meios; espírito não de contemplação mas de ação e manipulação das pessoas e das coisas; espírito principalmente hábil, organizativo e tecnocrático que a racionalização conduz e a eficiência inspira». Não que a experiência e o sentido crítico devam ser desvalorizados, mas que não se caia na tentação do abstrato. «A abstração, isolando e desvinculando seres e realidades, ergue, vai erguendo, sistemas fechados que surgindo com a pretensão de encerrarem a totalidade, a mutilam e a deformam»… E qual o resultado? A demonstração de que a indiferença e o fundamentalismo são faces da mesma moeda…

«O fanatismo, a despersonalização e a massificação, eis os resultados». Gabriel Marcel falava, por isso, dos homens contra o humano. E assim «os extremos do racionalismo e do irracionalismo tocam-se na mesma abolição das diferenças, na mesma promoção do uniforme e do homogéneo, na mesma negação do humano». A desordem que oprime e a ordem que reprime são expressões da mesma violência. E o que presenciamos hoje nesta tremenda escalada do ressentimento e da irracionalidade significa, no fundo, que «violência da paixão e violência da razão são as duas faces da mesma realidade histórica do ideologismo». E nessa palavra se resume a intolerância de quem julga possuir o exclusivo da verdade e da razão. E o Padre Manuel Antunes recordava, a propósito, o seu encontro com Gabriel Marcel: «estou a vê-lo na sua infinita curiosidade por tudo quanto é humano, nobremente humano, de preferência, e se revela através de uma superior forma de cultura: poema, quadro, drama, romance, música, pensamento filosófico e reflexão teológica, principalmente». Como «homo viator» buscava a unidade e a coerência, na «disponibilidade de serviço em prol do humano, na sua busca permanente de mais justiça, de mais verdade e de maior amor entre os homens».

Nada melhor do que a reflexão sobre as raízes da violência, neste momento grave de lembrança dos irmãos coptas – exemplos vivos desta Páscoa da Ressurreição. Mas também recordamos quantos se deixam arrastar pela mentira da violência – que o sagrado recusa. Fica-nos, porém, uma sensação estranha. A crucificação de Jesus Cristo continua a ser um mistério indecifrável. Paul Claudel disse: «Cristo não nos foi enviado para explicar a dor, mas para enchê-la da sua presença». O acontecimento repete-se em cada passo da vida da humanidade. E é nestas circunstâncias trágicas que devemos lembrar a sua perenidade – para que, em lugar da memória ressentida, prevaleça a memória amorável, generosa e compreensiva. Como afirmava o Padre Manuel Antunes, sem diálogo, a cultura «corre o risco de cair na sofística mais labiríntica e/ou obsessiva, no hermetismo sem janelas, no mutismo sem possibilidades de comunicação»…