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Pe. Alexandre Palma
Totti: uma maneira de ser herói
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Somos de um tempo pouco dado a heróis. Estreitou-se hoje o espaço para mitologias que engrandeçam a memória de antigos ou celebrem a exemplaridade de modernos. A «sociedade da transparência» (Byung-Chul Han) é, por consequência, uma sociedade do escrutínio. Escrutínio permanente e, com frequência, impiedoso para com vivos e defuntos. É que os heróis só verdadeiramente o conseguem ser quando observados de longe. Vistos de perto e por algum tempo, para o bem e para o mal, são apenas e só como todos nós. A curta distância quebra-se o encanto, porque a essa escala sobressaem também os pequenos defeitos e não só os grandes feitos. Ao fim de algum tempo a fragilidade revela-se, porque também ela define a natureza humana e, portanto, a dos candidatos a heróis. Na sociedade do escrutínio, o zoom das câmaras, o alcance dos microfones ou a saturação da informação tornam (quase) impossível a hipótese de que ainda haja heróis.

Mas no passado fim-de-semana algo de invulgar se passou. Numa bem coreografada despedida, Roma e o mundo do futebol celebraram um seu herói. Francesco Totti, jogador e capitão da AS Roma, concluía uma longa e bem sucedida carreira. Muito embora tenha sido campeão do mundo (2006), Totti não se singularizou pelo número de títulos conquistados. Por exemplo, vários jogadores do Benfica terão ganho nestes últimos 4 anos tanto quanto Totti nos seus 25 ao mais alto nível. Sendo um jogador de topo, Totti nem sequer se distinguiu por ter sido o melhor da sua geração. Contemporâneo de Van Basten ou Ronaldo, de Zidane ou Messi, parece nunca ter alcançado o nível destes e de outros expoentes do futebol destas últimas décadas.

Contudo, Totti é um herói da Roma moderna, não muito diferente daqueles que no passado foram celebrados na Roma antiga. Não por acaso, é chamado de «Imperador de Roma». Tornou-o absolutamente único outra coisa: ter sido sempre e só da Roma. Nunca tendo defendido as cores de outra equipa, ele passou de jogador a herói do clube. Dando-se assim àquela gente, ele passou de herói a símbolo amado de toda uma cidade, por adeptos como por adversários – «Totti é a Roma», gritava a bancada naquele fim de tarde. Eis, então, uma possibilidade bem moderna de ainda haver heróis. Não por se ser sempre o melhor, o mais forte ou sequer o mais bem sucedido. Sim, por se ser sempre todo. Assim foi Francesco Totti, ainda uma vez, na hora do seu adeus. Perante a incerteza de um futuro desconhecido e a sempre difícil saída de cena (experiência sua como de tantos entre nós), não se apresentou à multidão como o herói apático e perfeito de certas ficções. Foi também aí todo, quando, por entre lágrimas, declarava: «Tenho medo. Agora sou eu que preciso de vós».

Um herói débil não tem de ser menos herói. Só um herói que reconheça «Tenho medo» merecerá verdadeiramente esse título. Só um herói que diga «Preciso de ti» será digno do beneplácito da multidão. Eis o que o nosso tempo, no seu afã escrutinador, há-de ainda redescobrir. Para então se aperceber que, afinal, talvez não lhe escasseiem heróis, desses que discreta ou publicamente se põem inteiros naquilo que vivem.