Lisboa |
Conferência ‘Cuidados Paliativos: respostas sempre positivas’, em Carnide
Investir na vida, até à morte
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Uma médica, uma enfermeira e um padre debateram o tema dos cuidados paliativos, numa conferência organizada pela Paróquia de Carnide, tendo destacado a importância da “presença” e “alívio”, da “ética” e da “escuta”. “Todos os doentes merecem ser tratados com dignidade, com compaixão e respeito”, e a “viver tudo o que há para viver, até ao fim”.


Cuidados paliativos significam encontro, presença, ajuda, alívio. A opinião é da médica interna de oncologia Leonor Vasconcelos de Matos. “Para ilustrar a temática dos cuidados paliativos, muitas vezes surgem imagens de mãos dadas, de pessoas juntas e sorridentes, que sugerem a ideia de encontro. Porque, na verdade, os cuidados paliativos, na sua conceção mais básica, são isto mesmo: é o encontro, é o estar presente, é o ir ao encontro de, é o aliviar, é o ajudar”, descreveu a médica, na conferência ‘Cuidados Paliativos: respostas sempre positivas’, organizada pela Paróquia de Carnide, que decorreu no Centro Cultural Franciscano, em Lisboa, na noite do passado dia 4 de maio.

Esta jovem médica do Hospital São Francisco Xavier sublinhou que “a história dos cuidados paliativos começa precisamente com a história do alívio do sofrimento”. “Falar do alívio do sofrimento é falar, obviamente, de uma situação que está patente à medicina desde o início da Medicina. Mas é importante referir que os cuidados paliativos, esta atenção ao alívio do sofrimento, começou principalmente com os moribundos, aqueles que estavam a morrer, e tem uma forte ligação religiosa, pois foram as ordens religiosas, desde o tempo das Cruzadas, que tiveram a preocupação em arranjar casas para aqueles que estavam a morrer”, referiu.

Para esta médica, que exerce trabalho como clínica e desenvolve projetos na área dos cuidados paliativos oncológicos, “o conceito atual de cuidados paliativos prende-se muito com a evolução, na sociedade ocidental, nos últimos séculos, de como encaramos a morte”. “Nas sociedades tradicionais, a morte não era uma situação dramática, surgia de forma natural, e era encarada de forma familiar. Com o desenvolvimento, a industrialização e a entrada da mulher no trabalho, além da capacidade de erradicar muitas doenças, aumentou-se a longevidade e, com isto, fez-se surgirem as doenças crónicas”, lembrou, questionando: “Nos dias de hoje, em que temos esta tão grande preocupação com os cuidados no nascimento e com o início da vida, porque não há tanta preocupação com o extremo oposto, o fim da vida? Será que é por não estarmos cá depois para contar o quão bem estivemos no fim da vida? Não viveríamos nós muito melhor sabendo que, até ao fim da vida, independentemente da doença que tivéssemos e das nossas necessidades e do nosso sofrimento, a sociedade teria um modelo preparado para nos ajudar a ter vida até a morte?”. “Os cuidados paliativos são a história da prática do não abandono dos doentes em fim de vida e da reflexão da procura do papel da Medicina não só na cura, mas também na preocupação em encontrar respostas para os problemas do sofrimento humano, particularmente nas fases avançadas de doenças incuráveis”, sublinhou Leonor Vasconcelos de Matos.

 

“Interessa as necessidades da pessoa em sofrimento”

Falando sobre ‘Princípios fundamentais e contextualização dos cuidados paliativos’, a oradora destacou o papel da inglesa Cicely Saunders (1918-2005), enfermeira, assistente social e médica, que impulsionou o movimento atual dos cuidados paliativos. “Cicely Saunders teve esta grande máxima, no seu trabalho, de que os doentes em fim de vida mereciam ser tratados com dignidade, com compaixão e respeito, e também com uma rigorosa metodologia científica. Ela destacou a importância de oferecer cuidados paliativos de qualidade, principalmente aos doentes terminais”, demonstrou.

Em Portugal, o movimento de cuidados paliativos iniciou-se nos anos 90, com o surgimento dos primeiros institutos dedicados à dor e aos doentes terminais. Em 2004, a Direcção-Geral de Saúde emitiu o primeiro programa nacional de cuidados paliativos e a competência em medicina paliativa foi aprovada pela Ordem dos Médicos em 2013. “A Organização Mundial de Saúde define assim os cuidados paliativos: ativos, integrais, coordenados e globais, que visam melhorar a qualidade de vida e promover o bem-estar de pessoas com doença grave, incurável e progressiva, e das suas famílias, prevenindo aliviar o sofrimento através da identificação precoce, avaliação adequada e tratamento rigoroso dos problemas físicos, psicossociais e espirituais”, descreveu a médica interna de oncologia. “Os cuidados paliativos promovem o alívio da dor e de outros sintomas disruptivos, afirmam a vida e aceitam a morte como um processo natural, integram aspetos psicológicos e espirituais da pessoa, ajudam o doente a viver ativamente até quando possível, ajudam a família, promovem o trabalho em equipa – não há outro modo de exercer cuidados paliativos –, promovem a qualidade de vida e podem intervir precocemente no curso da doença”, acrescentou Leonor, reforçando que “os cuidados paliativos são cuidados centrados no doente”. “Mais do que o diagnóstico - prognóstico, interessam as necessidades da pessoa em sofrimento”, salientou.

 

Dignificar a vida humana

Todos os doentes terminais “necessitam de cuidados paliativos”. “Mas os cuidados paliativos vão muito mais além disso e quanto mais precocemente eles forem implementados, a verdade é que a evidência nos diz que não só os doentes vivem com melhor qualidade como vivem mais”, apontou, referindo ser “muito difícil” e “muito subjetivo” saber quando devem ser aplicados cuidados paliativos. “A investigação continua a decorrer, mas o que está bem definido é como identificar os doentes que não podem mesmo escapar aos cuidados paliativos, que são aqueles que estão a aproximar-se do fim da vida”, explicou.

Leonor Vasconcelos de Matos lamentou, por isso, que “em Portugal e no mundo ainda exista tão pouca oferta e disponibilização de cuidados paliativos”.  “Os cuidados paliativos são, por muitos, associados a derrota. A nossa sociedade está muito construída para o sucesso e a ideia da nossa finitude é uma ideia que nós repudiamos tanto que a atitude de quem está à frente e pode fazer com que as coisas mudem é de desinvestimento e de isolamento, numa área que quase parece que nos faz lembrar exatamente isto: que somos finitos”, salientou esta jovem médica, reforçando, no final da sua intervenção, a importância desta prática médica: “Os cuidados paliativos são cuidados que dignificam a vida humana, que têm muito este empenho no alívio do sofrimento e na multidimensionalidade que é o sofrimento, que promovem a melhoria da qualidade de vida e investem na vida até à morte”.

 

Acolher na relação

A conferência ‘Cuidados Paliativos: respostas sempre positivas’, segundo explicou o pároco de Carnide, padre Gonçalo Figueiredo, foi organizada “procurando responder ao apelo do senhor Patriarca que, em diversas ocasiões, falou sobre uma sociedade paliativa”. Mara de Souza Freitas, enfermeira e doutoranda em Bioética, falou sobre os ‘Grandes temas éticos na fase final da vida’ e considerou que “as questões éticas em cuidados paliativos não são muito diferentes das dos cuidados de saúde em geral”, mas “revestem-se de contornos específicos, atendendo à fase da vida em que as pessoas estão e à fragilidade que, efetivamente, estão a experienciar, quer a pessoa, quer a família”.

Assessora do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Mara, que exerceu funções como enfermeira durante 14 anos – dez dos quais na área da oncologia –, sublinhou estar a refletir nesta formação “a título pessoal”. “Comunicação, cuidar, compaixão, respeito, responsabilidade e solicitude. Estes conceitos são aquilo que nós chamamos a resposta positiva. É esta a resposta positiva que nós precisamos enquanto sociedade, enquanto doentes, enquanto cidadãos, enquanto profissionais de saúde, no sentido em que estas premissas são, elas mesmas, a expressão máxima da relação plural e subjetiva que nós temos com o outro e com os outros, no mundo. Porque, na realidade, o que nós nos esquecemos é que, antes daquele que é um dever profissional, é o dever que nós temos de acolher na relação com o outro aquilo que ele é e a fragilidade que ele é”, sublinhou a oradora.

Falando sobre a decisão ética em cuidados paliativos, Mara lembrou palavras de Daniel Serrão, seu antigo professor e que foi “um dos grandes mestres de Bioética em Portugal”. “O professor Daniel Serrão dizia que face a situações de grande vulnerabilidade, é eticamente aceitável a discriminação positiva em favor dos mais vulneráveis”, refere, sublinhando que “o professor Daniel Serrão dizia sempre que a Bioética era o amor à vida”.

Para esta enfermeira, “a grande subtileza das questões dos grandes temas de fim de vida não é, também, todo o manancial técnico”. “É sobretudo as respostas éticas, porque nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente aceitável. Temos que circunscrever a nossa prática àquilo que, dentro da ética, se realiza e permite ao homem, e a cada um de nós, realizar-se”, terminou Mara de Souza Freitas.

 

Acompanhar o sofrimento

“Um dos tópicos essenciais nos cuidados paliativos é a forma como nós estamos muito atentos ao sofrimento”. Frei Hermínio Araújo é assistente espiritual e refletiu sobre ‘Acompanhar espiritualmente a pessoa em fim de vida’. “Quando a nossa abordagem também passa pela experiência espiritual, o irmos acompanhando a experiência espiritual dessa pessoa concreta, estamos muito atentos ao seu sofrimento”, apontou, citando depois o antigo presidente da Sociedade Espanhola de Cuidados Paliativos: “O professor Enric Benito dizia que já avançámos em muita coisa, ao nível por exemplo dos fármacos, mas ainda não avançámos quase nada em relação àquilo que tem a ver diretamente com o acompanhamento do sofrimento”.

Frei Hermínio deixou o seu testemunho a partir da experiência de 20 anos – “praticamente desde que sou sacerdote” – a fazer acompanhamento espiritual no contexto das unidades de saúde, primeiro na Clínica de São José, em Telheiras, na área da saúde mental e da psiquiatria, e depois, desde há 10 anos, na área dos cuidados paliativos, no Hospital do Mar, na Bobadela. “Cuidados paliativos não é ajudar a pessoa a morrer. É ajudar a pessoa a viver tudo o que há para viver, até ao fim. Porque, tudo somado, nós não ajudamos ninguém a morrer”, assegura, destacando que “o centro está na pessoa, numa perspetiva relacional”. “A ética é essencialmente relacional. A comunicação e a relação são aspetos centrais no que diz respeito ao acompanhamento espiritual”, frisa. Neste sentido, prosseguiu, “a experiência espiritual é algo que remete essencialmente para a relação”. “O lugar simbólico da espiritualidade é o coração, porque o essencial é invisível aos olhos”, apontou este sacerdote franciscano.

Frei Hermínio refere que da sua experiência de acompanhamento espiritual em unidades de saúde aprendeu “essencialmente a levar muito a sério o sofrimento”. Por isso, convidou a “estar muito atento à solidão dos que estão a sofrer”. Citando novamente a Sociedade Espanhola de Cuidados Paliativos, este orador lembrou que “a experiência espiritual é essencialmente uma experiência de relação”. “De relação como? Da pessoa com ela própria, da pessoa com as pessoas mais significativas, familiares ou outros, da pessoa com tudo, da pessoa com todos, da pessoa com Deus”, afirmou. “Falar de experiência espiritual sendo essencialmente uma experiência de relação é válido para crentes, para não crentes, independentemente das suas crenças ou não crenças, de ser agnóstico ou ser ateu. Isso é perfeitamente secundário. É uma experiência de relação que é para todos, havendo depois uma articulação com a experiência religiosa para aqueles que acreditam em Deus”, acrescentou.

Nesta conferência, frei Hermínio Araújo destacou ainda a importância da compaixão. “Na relação espiritual de ajuda, em que o conceito de acompanhamento é fundamental, a presença compassiva é muito importante”, observou, lembrando “o episódio de Jesus com os discípulos a caminho de Emaús” como “o texto base da relação espiritual de ajuda”. “O que está em causa não é propriamente ajudar a morrer, mas ajudar a viver, tudo o que há para viver, até ao fim, em quatro aspetos: viver intensamente a amizade/o amor; viver intensamente o perdão; viver intensamente a gratidão; e viver intensamente o despreendimento”, apontou frei Hermínio.

texto e fotos por Diogo Paiva Brandão
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