Entrevistas |
Pedro Vaz Patto, jurista e presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
“A legalização da eutanásia tem consequências sem paralelo”
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A inconstitucionalidade e a falta de “legitimidade democrática” são dois dos fatores apontados pelo jurista Pedro Vaz Patto para colocar em causa a aprovação da lei da eutanásia. A poucos dias da discussão do tema, no Parlamento, o presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz fala ao Jornal VOZ DA VERDADE do que está em causa com esta lei e lamenta que a discussão não tenha ainda chegado à “maior parte” das pessoas.

 

O Parlamento português está prestes a discutir a legalização da eutanásia. Ao legislar esta matéria, quais poderão vir a ser as consequências?

A legalização da eutanásia tem consequências sem paralelo em relação a outras questões que são hoje objeto de discussão parlamentar. Atinge dois princípios estruturantes da nossa civilização e da nossa ordem jurídica: o princípio da inviolabilidade da vida humana (a proibição de matar, o não matarás do decálogo judaico-cristão) e o princípio de que a vida humana nunca perde dignidade, nunca deixa de merecer proteção.

Com a legalização da eutanásia, o Estado e os serviços de saúde veiculam a mensagem contrária, isto é, a de que a vida marcada pela doença e pelo sofrimento deixa de merecer proteção. Ou seja: que a morte provocada pode ser uma resposta para a doença e para o sofrimento. E isso significa desistir de combater e aliviar o sofrimento (porque a eutanásia não elimina o sofrimento, elimina a pessoa que sofre).

Veicular essa mensagem abre uma brecha no edifício da nossa civilização e da nossa ordem jurídica, uma brecha que vai corroendo, progressivamente, todo o edifício. E essa brecha é, antes de mais, de ordem cultural. Vai-se difundindo na mentalidade comum a ideia de que a morte provocada pode ser uma resposta para a doença e para o sofrimento. Essa mensagem desencoraja os próprios doentes e as pessoas que sofrem, as quais, com mais frequência e probabilidade, poderão sentir que são um peso para os outros. E desencoraja todas as pessoas que cuidam desses doentes, familiares e profissionais, quando se deveria esperar, da sociedade e dos serviços de saúde, precisamente o contrário.

Há que pensar nestas consequências, que vão muito para além do curto prazo.

 

Como analisa as propostas legislativas que foram apresentadas sobre o tema?

Não me parece decisivo analisar em pormenor cada uma das propostas legislativas em discussão. Essas propostas contêm exigências de controlo semelhantes às que se verificam noutros países e que não se têm revelado eficazes a ponto de limitar a prática da eutanásia a casos raros e excecionais. E isso verifica-se por razões lógicas e previsíveis.

Se se parte do princípio de que a vontade da vítima torna lícita a morte provocada (se é lícito o homicídio a pedido), não se justifica a restrição dessa licitude a situação de doença terminal ou de sofrimento físico (e não o fazem as propostas em discussão) e a eutanásia estende-se a situações de doença crónica e de sofrimento psíquico. E um passo seguinte, atualmente em discussão na Holanda, será o seu alargamento a situações de idosos não doentes, mas “cansados de viver”…

Conceitos indeterminados, como os de “sofrimento insuportável” ou “sofrimento extremo”, a que recorrem essas propostas, também permitem o alargamento do campo de aplicação da eutanásia.

E, de qualquer modo, qualquer forma de controlo, mais ou menos “burocratizada”, depende decisivamente da comunicação do próprio médico que pratica a eutanásia e que dificilmente se auto-denunciará quando não cumprir os requisitos legais.

 

Considera esta uma matéria referendável?

Uma primeira questão que condiciona a admissibilidade da sujeição de uma proposta legislativa a referendo é a sua conformidade com a Constituição. Ora, a Constituição proclama, no artigo que precede todo o elenco dos direitos fundamentais (o artigo 24.º), o princípio da inviolabilidade da vida humana, fá-lo de uma forma muito clara e inequívoca, sem deixar margem para exceções. A eutanásia e o suicídio assistido contrariam frontalmente tal princípio. Por esse motivo, parece-me que não estamos perante matéria referendável.

Mas também por esse motivo, a eutanásia não deveria ser sujeita a votação parlamentar. Na atual legislatura, quando esta matéria não constava dos programas eleitorais e divide os maiores partidos, há também uma falta de legitimidade democrática substancial que o referendo poderia suprir. Mas restaria sempre a inconstitucionalidade da proposta.

Além de que seria difícil, neste âmbito, formular uma pergunta de forma simples, compreensível e consensual. Teria de ser omitido o uso de linguagem tendenciosa, como a expressão “morte assistida”.

 

A discussão pública que está a ser feita tem sido esclarecedora do que está em causa?

Quando já participei em dezenas de debates e entrevistas sobre esta questão, não posso dizer que não tem havido discussão pública. Mesmo assim, parece-me que a discussão se limitou a um grupo restrito de pessoas especialmente interessadas, não chegou à maior parte.

Mas, sobretudo, parece-me muito curto o período de discussão no Parlamento, entre a votação na generalidade, prevista para o dia 29 de maio, e a discussão na especialidade e a votação final, que deverão estar concluídas até ao fim da sessão legislativa. Ao que tenho ouvido dizer a deputados, têm sido muito mais prolongados os períodos de discussão de propostas sem o relevo e o alcance que tem esta.

 

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Perguntas e respostas sobre a eutanásia

 

O QUE É?

A eutanásia

A eutanásia é uma ação ou omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento.

A ela se pode equiparar o suicídio assistido (quando não se causa diretamente a morte de outrem, mas se presta auxílio ao suicídio de outrem) também com o objetivo de eliminar o sofrimento.

 

A obstinação terapêutica

A obstinação terapêutica (ou encarniçamento terapêutico) corresponde à aplicação de todos os métodos, diagnósticos e terapêuticos, conhecidos, mas que não proporcionam qualquer benefício ao doente. Tem como objetivo prolongar de forma artificial e inútil a sua vida.

Impede-se dessa forma, através de uma atuação terapêutica desadequada e excessiva, que a natureza siga o seu curso.

Esta abordagem é eticamente condenável, corresponde a má prática médica e conduz à chamada distanásia.

 

Os cuidados paliativos

Os cuidados paliativos intervêm ativamente no sofrimento, mitigando a dor e outros sintomas e proporcionando apoio espiritual e psicológico, desde o momento do diagnóstico até ao final da vida.

Servem para melhorar a qualidade de vida dos doentes e das famílias que se confrontam com doenças ameaçadoras, independentemente do diagnóstico e do tempo de vida esperado.

Os cuidados paliativos são prestados por uma equipa multidisciplinar especializada.

 

É LÍCITO PROVOCAR A MORTE DE UMA PESSOA A SEU PEDIDO?

NÃO. O direito à vida é indisponível. Não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima.

A vida é o pressuposto de todos os direitos, e também da liberdade. Não há liberdade sem a vida. Com a eutanásia e o suicídio assistido atinge-se a raiz e a fonte da liberdade, que é a vida.

Existem outros direitos humanos fundamentais indisponíveis que são expressão do valor objetivo da dignidade da pessoa humana. Também não podem justificar-se com o consentimento da vítima a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde.

 

É LÍCITO PROVOCAR A MORTE PARA ELIMINAR O SOFRIMENTO?

NÃO. Com a eutanásia e o suicídio assistido, não se elimina o sofrimento, elimina-se a vida da pessoa que sofre. Tal como não se elimina a pobreza eliminando a vida dos pobres.

A morte provocada não é resposta para o sofrimento. O recurso à eutanásia e ao suicídio assistido é uma forma de desistir de combater e aliviar o sofrimento.

Com a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, o Estado afirma que a vida de pessoas doentes e em sofrimento já não merece proteção, não é digna de ser vivida. E isso não é aceitável.

A dignidade de uma pessoa não se mede pela sua utilidade para a sociedade, nem diminui com o sofrimento ou a proximidade da morte.

A dignidade da vida humana não depende de circunstâncias externas e nunca se perde.

 

A VIDA TEM APENAS UM VALOR INDIVIDUAL?

A vida não pode ser concebida como um objeto de uso privado. Não está de forma incondicional à disposição do seu proprietário para a usar ou a deitar fora de acordo com o seu estado de espírito ou determinada circunstância.

Ninguém vive para si mesmo, como também ninguém morre para si próprio.

A vida tem uma referência social associada ao amor, à responsabilidade, à interdependência e ao bem comum.

Todos temos que defender a vida humana.

 

QUAIS AS NECESSIDADES DO DOENTE EM FIM DE VIDA?

Estas necessidades assentam essencialmente no alívio do sofrimento físico e psíquico e no apoio espiritual, prestados por uma equipa devidamente capacitada, e no suporte afetivo, através da família e amigos.

Uma correta terapêutica da dor física torna-se necessária e importante para garantir a melhor qualidade de vida.

O sofrimento psíquico necessita de acompanhamento e apoio adequado.

As necessidades espirituais devem ser valorizadas, para se disponibilizar o apoio devido, que garanta uma intervenção plena no sofrimento.

 

QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DA LEGALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA?

Destruição da relação médico-doente

O médico não pode mudar de posição, não pode fazer tudo para melhorar a vida do doente e, em simultâneo, agir, a pedido do doente, no sentido de lhe tirar a vida, ajudando ao suicídio.

Se admitirmos a eutanásia, é destruída a relação médico-doente, que assenta numa base de confiança, que deve ser respeitada e que é a base da medicina. A eutanásia opõe-se à medicina e acaba por ser a sua negação.

 

Risco de aumento generalizado da eutanásia

É conhecida a imagem da rampa deslizante, muitas vezes evocada a este respeito.

A experiência dos Estados que legalizaram a eutanásia revela que não é possível restringir essa legalização a situações raras e excecionais.

O número de mortes associadas à eutanásia e ao suicídio assistido aumentou nos países em que tais práticas foram legalizadas, como é o caso da Bélgica, Holanda, Suíça e o Estado de Oregon nos Estados Unidos.

Uma vez legalizada a eutanásia, o Estado corre o risco de, por razões economicistas, privar os doentes com doenças incuráveis de receber os tratamentos adequados e com isso antecipar o momento da morte, encurtando a vida da pessoa.

Em países que legalizaram a eutanásia, a prática desta estendeu-se a crianças recém-nascidas com deficiências graves e a adultos com grave deficiência e incapazes de exprimir a sua vontade consciente.

 

A LEGALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA É UM PROGRESSO CIVILIZACIONAL?

Não é um progresso civilizacional, mas antes um retrocesso.

Em diversas sociedades primitivas, bem como na Grécia e na Roma antigas, a eutanásia era praticada.

A valorização e a defesa da vida humana em todas as suas fases foram instituídas, em grande parte, pelo cristianismo.

Uma sociedade será tanto mais moderna e avançada quanto melhor trata e cuida dos seus elementos mais vulneráveis, criando leis e normas que impeçam o mais forte de exercer o seu poder sobre o mais fraco.

 

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A Conferência Episcopal Portuguesa está a distribuir cerca de um milhão e meio de desdobráveis ‘Perguntas e respostas sobre a eutanásia’. A iniciativa, realizada em conjunto com a Associação dos Médicos Católicos Portugueses, a Comissão Nacional Justiça e Paz e vários organismos da sociedade civil, tem como objetivo informar a população sobre a eutanásia e a posição da Igreja sobre o assunto. O folheto pode também ser encontrado no site www.conferenciaepiscopal.pt.

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