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Pe. Alexandre Palma
Hóspedes
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Todos somos hóspedes. Somo-lo, claro está, naquelas circunstâncias em que nos achamos deslocados. Então carecemos dessa forma intensa de acolhimento que chamamos hospitalidade. Mas somo-lo ainda de uma forma bem mais radical. Não somos somente hóspedes na vida. Somos hóspedes da vida. Somos acolhidos nela cada dia, como se de estrangeiros ou peregrinos nos tratássemos. E a vida – ou o Senhor da vida – abre-nos sempre de novo um espaço onde podemos estar e, sobretudo, ser. Daí que a hospitalidade não seja só uma questão ética. Como assinalam filósofos como Levinas ou Derrida, a hospitalidade é constitutiva do que somos. Para lá de virtude moral, a hospitalidade é uma qualidade do humano. O ser humano é um hóspede e, ao mesmo tempo, há nele a capacidade de hospedar. De forma bem transversal, quase todas as religiões, culturas e civilizações o perceberam. Por isso nela viram não apenas uma questão física, mas também social e espiritual. Julgo que precisaremos hoje de redescobrir esta nossa tradição e, sobretudo, de nos reencontrarmos com esta nossa condição de hóspedes.

Confesso que, este verão, foi para mim ocasião precisamente para isto. O facto de ter sido acolhido, em mais do que um contexto e por períodos dilatados de tempo, fez-me pensar nesta minha condição de hóspede. Condição temporária, mas ainda assim sinal desse seu enraizamento mais profundo e estrutural. É que estaremos hoje menos expostos à experiência de necessidade que, em tempos passados, determinou a situação do hóspede. Hoje, quando por qualquer motivo nos afastamos de casa, fazemo-lo de forma controlada. Por norma, partimos com o suficiente para garantir o nosso bem-estar. Fazemo-lo confiados numa nova economia do acolhimento, que desenvolveu estruturas especificamente dedicadas a tal (hotéis, restaurantes ou outras). As sociedades institucionalizaram assim a hospitalidade. Mas o que se ganhou em eficiência e confiabilidade veio também com o seu preço. A hospitalidade profissionalizou-se e mercantilizou-se. Ao longo deste processo, ela foi deixando de ser sentida como gesto de toda uma comunidade e tarefa de cada um dos seus membros. Por um lado, ela tornou-se competência de alguns – por norma dos outros. Por outro lado, tornou-se-nos cada vez mais estranha a experiência de precariedade que descreve a condição de hóspede – o que obscureceu a consciência de que somos hóspedes e do que é carecer de hospitalidade. Porventura mais grave ainda, deixámos de poder fazer a experiência de como a hospitalidade, muito embora gesto exigente, é uma bênção recíproca – para hóspede e hospedeiro. Não se estranhe, por isso, a falta de clareza cultural e política que as nossas sociedades ocidentais sentem em torno deste tema. Sejam estes hóspedes turistas, amigos, conhecidos, estranhos, migrantes ou refugiados. Como dizia ao início, esta não é apenas uma questão ética. A nossa incompreensão acerca do que seja a situação do hóspede não reflecte apenas uma dificuldade na nossa relação com o outro. Ela põe também a nu uma crise na compreensão do que nós próprios somos.