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António Bagão Félix
Natal para além da circunstância
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Gente munida de cábulas rasuradas até à ilegibilidade mergulha na compulsiva prática natalícia de comprar coisas, afagar a contabilidade das prendas e destilar litros de angústia.

Uns, na posição de adiantários, compram antes para não pensar depois. Outros, retardatários, deixam para o limite do calendário oficial o que vão comprar já na ausência do pensar.

O prazer de dar cede lugar à maçada de ter de dar. A serenidade do pensamento da escolha é atropelada pelo turbilhão de uma escolha que já não o é. Oferecer, como acto que vale por si só, esfuma-se na conta corrente que confronta o que se dá com o que se recebe e é medida mais em euros do que em valores de vida e relação.

Dar só é bom se for natural. Dar só vale a pena se a pessoa que recebe está antes da prenda que se entrega. Dar só faz sentido se o que se partilha é uma ponte entre pessoas construída sobre um oceano de amor, um rio de amizade, um lago de estima.

As compras de Natal dividem-se em vários tipos: as consuetudinárias, porque obrigatórias pela tradição ou pelo simples decurso da máquina do tempo; as sociais, porque tornadas necessárias como profilaxia da maledicência ou despeito; as profissionais, mecanicamente escolhidas por outros, oferecidas aleatoriamente e pagas por terceiros; as quitadas, enquanto recibo atrasado de uma qualquer mordomia, favor ou atenção; as de segurança, tipo posta-restante, porque guardadas para o que der e vier ou para salvar a face com alguém que cometeu a imprudência de nos surpreender com um abusivo presente; as simplesmente monetárias, porque embrulhadas num cheque ou papel-moeda, espécie de vale de livre escolha. Por fim, o tipo de prendas tendencialmente minoritário: as verdadeiras, porque exclusivamente sentidas como a expressão de um verdadeiro sentimento de união, estima ou consideração.

Milhões, muitos milhões giram na volúpia dita natalícia para delícia dos que vendem e do Estado ávido de mais imposto sobre o valor acrescentado!

E, no entanto, é o Natal que nos traz a melhor prenda que alguma vez a humanidade recebeu: a Encarnação divina, o Menino Jesus! Anuncio-vos uma grande alegria (Lc 2,10) é a mensagem que nós celebramos no Natal. A vitória da Vida sobre a morte.

O Natal é o aniversário de Jesus. A exaltação da Vida como dom supremo, da Família como sociedade natural de amor e partilha, da liberdade enquanto expressão máxima da responsabilidade. Será demais procurarmos uns momentos para participar na festa do Aniversariante, com toda a alegria que nós contivermos e com toda a simplicidade da pureza que nós retivermos?

Tenho esperança de que estes sentimentos não se dissolvam, apesar da luta desgastante que travam contra a poluição dos afectos, contra o relativismo desértico, contra o hedonismo ilusório.

Jesus nasceu na pobreza e em pobreza viveu para assim nos enriquecer. Maria deu à luz o Seu Filho na discrição, na austeridade, despojada de conforto, mas plena de Graça.

Nesta quadra, sintamo-nos ligados por aquilo que, verdadeiramente, pode unir as pessoas de bem: a bondade de espírito, a mansidão de alma, a solidariedade de se ser e, sobretudo, a celebração da vida. Através da reinvenção da quietude, da paz interior, da satisfação pelo dever cumprido. É preciso olhar para dentro e, depois, partir para os outros. Com esperança e júbilo. No fundo, a essência do Natal.

 

(por vontade própria, escrito não seguindo o chamado AO)