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Pe. Alexandre Palma
No princípio
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Poder voltar ao princípio e recomeçar. Sempre de novo. Não importa quantas vezes e em que etapa da vida. Eis um tópico maior da mensagem cristã. Talvez nisto resida um dos seus grandes paradoxos. Paradoxo, porque o cristianismo é, geneticamente, realista: crê no Deus humanado e na história do mundo como lugar da sua presença. Mas fá-lo conservando a capacidade de sonhar e confiar em algo de diferente, de melhor, sobretudo de mais elevado. No fundo, o cristianismo acalenta um sonho realista. Eis, então, um sublime paradoxo cristão.

O Evangelho, da primeira à última página, quer reconciliar com o princípio. É assim que ele apresenta o seu Cristo: «No princípio era o Verbo» (Jo 1, 1). É assim que ele relê profeticamente os grandes desvios da história: «No princípio não era assim» (Mt 19, 8). É assim que ele eleva o recomeço a critério de vida evangélica: «Quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus» (Jo 3, 3). Isto mesmo é insistentemente celebrado pela Igreja, desde o ciclo do Natal ao Mistério Pascal. Tanto num como noutro, tudo se joga entre nascer e renascer. Num como noutro, tudo se densifica na extraordinária possibilidade de reviver.

Talvez espante esta estranha ingenuidade do cristianismo. Sendo antigo de dois mil anos, como é possível que ele ainda se deixe levar por esta ilusão? Essa sua longa história não documenta precisamente o contrário? Depois de tantos dramas e desencantos, duramente provados à pequena escala de vidas individuais ou à grande escala de civilizações inteiras, como é ainda possível acreditar que recomeçar e seguir por outro caminho é sempre possível? Esta compreensível perplexidade levará alguns a concluírem que o cristianismo foi vencido pelo tempo e está desactualizado. Ele fala e propõe quimeras que a experiência humana passada e presente parece desmentir. E, no entanto, dessa sua capacidade de acreditar «no princípio» poder-se-á concluir precisamente o contrário. Ou seja, é porque o cristianismo nunca se acomoda perfeitamente a nenhum tempo que ele é sempre actual. Será, segundo me parece, essa sua resistente desconformidade a cada situação e contexto que fazem dele «sal da terra e luz do mundo» (Mt 5, 13-14). Assim sim, ele traz algo de novo ao já há muito sabido e experimentado. Um novo que permite sair dessa espiral que nos faz crer que apenas nos é lícito esperar para o futuro a mera repetição do que já aconteceu no passado. Esta actualidade do cristianismo será hoje mais actual do que nunca. Num tempo grávido de fatalismos e determinismos (sociais, económicos, tecnológicos, biológicos), haver quem cultive a sábia ingenuidade de acreditar que é sempre possível renascer é um bálsamo precioso para um mundo amedrontado. É puro oxigénio para todos os inconformados, ainda capazes de sonhar e acreditar.