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Guilherme d’Oliveira Martins
Sophia de Mello Breyner Andresen
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Celebram-se este ano cem anos do nascimento de Sophia de Mello Breyner, um sinal muito português e universal de talento, sensibilidade e sabedoria. Cada palavra da sua obra apela à reflexão, à exigência e à liberdade, para além do efémero das ideias feitas para contentarem o “espírito do tempo” (“odiei o que era fácil/ procurei-me na luz no mar no vento” - Mar Novo, 1958). E quando João Bénard da Costa disse que Portugal não é um país de poetas, como alguns pretendem, afirmou que só o século XX pôde confirmar o mito, com Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Jorge de Sena, Ruy Belo, Herberto Hélder, Eugénio de Andrade. Mas ele estava, essencialmente, a pensar em Sophia de Mello Breyner Andresen. Não se esqueça que Luís de Camões (1524-1580), enquanto símbolo, foi, ao longo dos tempos, mais esquecido do que recordado, continuando a sua obra por cultivar, como grande referência europeia ao lado de Cervantes e de Shakespeare. Como cantou Sophia: “sempre os inimigos sobejaram/ a quem ousou mais ser que a outra gente” (Dual). “Não tenho explicações/ olho e confronto/ e por método é nu/ meu pensamento”. O que importa é interrogarmo-nos sobre a ligação entre o destino e a criação artística e literária - contra o fatalismo, para que a esperança se encontre com a vontade. A obra da poeta portuguesa, nascida numa família aristocrática portuguesa de raízes liberais, neta do Conde de Mafra, que lhe incutiu o amor pela poesia portuguesa de Camões a Antero de Quental, representa o rigor na palavra e nas ideias – o equilíbrio sereno na procura do tempo exato, da aventura essencial que busca o horizonte inatingível da liberdade e da verdade. “Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade/ medindo o equilíbrio dos meus passos” (Coral, 1950). Estamos perante uma voz inconfundível que cultivou a limpidez, num mundo que se deixa demasiado fascinar pela treva. A cidadã nunca renunciou a dizer de sua justiça, como voz incómoda de lutadora pela liberdade e pela democracia, contra a ditadura, a repetir-nos em todos os momentos que “vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. E assim encontramos uma coerência irrepreensível entre a serenidade da atitude e a firmeza da convicção – quando tudo pareceria apelar à distância e à comodidade.

Francisco Sousa Tavares, seu marido, disse que “tinha sinais do seu Deus na confusão dos homens”. E Eduardo Lourenço viu bem quando diagnosticou “uma espécie de milagre, de raro e quase incrível privilégio” que deve “ter preservado cedo a jovem Sophia, católica e portuguesa, daquela obsessão culpabilizante que encharca por dentro a lírica nacional”. Foi decerto a leitura de Homero, que levou a poeta até à “claridade grega”, ao sonho mediterrânico, à perceção exata de uma paixão temperada pela medida, que está na raiz da Europa e que tem como referência Ulisses, fundador mitológico de Lisboa e do continente. “Em Homero reconheci essa felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas” (Arte Poética-III). É o convívio enriquecedor dos clássicos e da sua arte. E quem poderá deixar de ouvir a educadora, a apelar ao bom senso da “Menina do Mar” ou do “Cavaleiro da Dinamarca”: “espero que na educação portuguesa passe a haver mais música, mais poesia oralmente dita e mais ginástica”? Assim mesmo porque o rigor e a qualidade se fundam na vida e na sensibilidade, na arte do saber, do fazer e do ser.

Moral da história? “O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o destino dos outros”. Assim, “somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser”, reunidos por uma “consciência comum” ou, como diria Teilhard de Chardin, pela “nossa confiança no progresso das coisas”. Sophia foi e é, com a sua escrita e o seu exemplo, uma referência forte que fica para além dos jogos de palavras e de circunstâncias. Jerusalém e Atenas encontram-se no equilíbrio dos passos e na invocação das raízes e do espírito. “Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa” (Arte Poética III, 1964). “O que a Sophia diz está sempre certo!”. O poeta Pedro Tamen recorda a afirmação perentória e indiscutível de um outro poeta amigo de Sophia, Ruy Cinatti. Era assim, de facto, com as palavras medidas, de lugar irrepreensível, sempre em busca dos arquétipos divinos.