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P. Manuel Barbosa, scj
Cuidar o olhar
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Olhar, discernir, decidir: é nesse dinamismo que os nossos bispos nos ofereceram recentemente uma carta pastoral, convidando-nos a olhar o País e a Europa à luz da mensagem da Igreja:

“Com esta reflexão orientada pelos grandes princípios da doutrina social da Igreja, queremos contribuir para um melhor discernimento sobre as realidades do nosso País e da Europa, numa altura em que somos chamados a participar através do voto em eleições europeias e nacionais, visando a construção de uma sociedade mais justa e fraterna”.

O texto convida-nos a ler a realidade à luz desses grandes princípios: a dignidade da pessoa humana, o bem comum, a solidariedade e a subsidiariedade. Isso está bem explanado ao longo das suas páginas, com exemplos e provocações concretas, colocando a pessoa humana no centro do olhar ou olhares que podemos ter da realidade que nos entranha no quotidiano das nossas existências. Assim, o documento deve ser lido num horizonte mais alargado, não se confinando à participação cívica, livre, consciente e responsável nos atos eleitorais.

Sem entrar nas grandes problemáticas dessa longa e profunda reflexão, desejo apenas questionar o modo como olhamos o nosso ser, os seres humanos, os outros seres criados e o Criador, de forma bem concreta na vivência das nossas famílias e comunidades cristãs e religiosas.

O nosso olhar é simplesmente fugaz e superficial ou é um olhar que permanece com sentido, que nos compromete e envolve os outros? Como cuidamos a vida, no seu todo e desde o início até ao seu fim natural? Como tratamos os mais novos, as crianças, os jovens, os adultos? Como cuidamos os idosos: com indiferença e abandono ou como bênção preciosa a conservar dignamente até ao fim das suas existências? Como cuidamos as nossas relações familiares e comunitárias, nomeadamente na mesa da refeição? É espaço de encontro, de autênticos olhares entre pessoas que se apreciam e estimam, ou são olhares que se dirigem apenas para telemóveis bem posicionados, de modo que quem está ao nosso lado não estorve as navegações internautas consideradas prementes e urgentes? Como estamos e agimos nos nossos espaços de trabalho e de lazer? Sentimos que há pessoas junto de nós, com alegrias e tristezas, com ansiedades e anseios, ou chegamos ao fim do dia em que mal tiramos os olhos da coisa que é o telemóvel ou o computador? Como olhamos os nossos doentes e frágeis em casa, nos hospitais, nas casas de repouso de terceira ou quarta idade? Como olhamos os descartados, os que são abandonados, os que estão em situação de refúgio (refugiados) porque procuram apenas uma vida digna? Estamos comprometidos no mundo, concretamente em Portugal e na Europa, ou damos apenas umas migalhas do que nos sobra? Como olhamos e cuidamos da nossa casa comum, no respeito integral pela criação?

Talvez por estar em recuperação da saúde após alguns dias do hospital, apeteceu-me apenas fazer perguntas simples sobre o modo como olhamos. Mesmo anestesiados ou em sofrimento, devemos ser capazes de perceber tantos olhares de atenção, de carinho, de dedicação, e alguns também que são de bom despacho e comodismo.

Só podemos discernir e decidir, se tivermos um olhar atento, com a mente e o coração, sobre o que se passa em nós e à nossa volta, sem qualquer tipo de julgamentos, pois discernir não é julgar sem mais, antes implica sentido crítico das realidades em vista de uma sociedade construída na justiça e na paz, sem violências nem atentados de qualquer espécie.

Não falei da carta pastoral nem das grandes problemáticas aí elencadas; um texto que, repito, importa ler e reler. Quis apenas chamar a atenção para o olhar, primeira palavra que intitula o documento; olhar como atitude plural nas suas formas, mas em sintonia na defesa integral da dignidade da pessoa, sempre e em tudo.

Iluminados pelo Evangelho que é Jesus Cristo, donde bebe a doutrina social da Igreja, cuidemos os nossos olhares, para bem discernir e melhor decidir!