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Pe. Alexandre Palma
Anónimo
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Etimologicamente significa «desprovido de nome». Todavia, é comummente dito daquilo ou daquele cujo nome se desconhece. Gostei de escutar, há não muito tempo, a socióloga de religião Grace Davie falar acerca do anonimato. Mais especificamente, explicar como um número significativo de crentes (ou gente em busca de Deus) procura hoje cultivar a sua fé em contextos que lhe permitem conservar-se anónimo. Este não será o único padrão, mas a sua relevância parece crescente. Assim se explicará por que tantos fazem de santuários os seus espaços religiosos de referência, confortáveis em assembleias de anónimos ou podendo por ali deambular de forma incógnita. Ou então, frequentando igrejas dos centros urbanos, onde a confluência de gentes de muitos lados, diluídos entre residentes, passantes ou turistas, permite estar sem ser reconhecido.

É natural que a muitos tal forma de práctica religiosa pareça insuficiente. Com certeza, também ela deverá ser sujeita a um discernimento evangélico. Contudo, antes de precipitados juízos de valor, parece-me que esta busca de anonimato merece ser devidamente considerada e interpretada. Aliás, encontro-me por vezes com uma visão que me parece demasiado idealizada, segundo a qual todos andaríamos por aí mais ou menos sedentos de reconhecimento. Bastará frequentar transportes públicos ou filas do supermercado (se calhar é isso que falta!) para nos darmos conta de que não há ali nenhuma vontade reprimida de fazer amigos. Precisamente o contrário. Evita-se cruzar o olhar. Cultiva-se um silêncio intencional, por vezes imposto com head-phones, quase sempre garantido por um uso maquinal do próprio smartphone.

Bem vistas as coisas, talvez este padrão de comportamento não seja assim tão ilógico. Vivemos em condomínios residenciais onde há mais e mais gente por metro quadrado. Trabalhamos em equipas que recorrentemente se renovam e ampliam. Gastamos o tempo de lazer, precisamente, a construir a teia das «redes sociais». Perante tudo isto, uma demanda de anonimato não será mais que a necessária desintoxicação de um excesso de exposição, tão característico dos modos de vida contemporâneos. Será mesmo irrelevante que tantos, de forma espontânea, vejam na sua vida de fé uma sede desse anonimato verdadeiramente contra-cultural?

É certo que a experiência cristã se orienta para a ekklesía, ou seja, para a assembleia, para a comunidade. É certo que ela decorre da revelação de um Deus com nome, ou seja, em Jesus. É certo que ela acontece a partir de um encontro pessoal com este Deus «não-anónimo», ou seja, no reconhecer-se reconhecido pelo Senhor. É certo, que a grande história bíblica dá sobeja notícia deste descobrir-se alguém com nome diante de Deus. Mas não é menos certo que a grande narrativa evangélica não ignora os anónimos. Pelo contrário, são tantos e tantos aqueles que, mesmo entre os mais íntimos de Jesus, permanecem vivos na memória crente, mesmo quando o seu nome ficou para sempre desconhecido. Dir-se-ia que, apesar de anónimos, foram elementos decisivos nesse revelar-se de Deus junto de nós. Poder-se-á dizer ainda mais: é por permanecerem anónimos que nós, ao lermos os relatos dos seus encontros e diálogos com Jesus, nos podemos mais facilmente colocar no seu lugar. Em suma, isto: há também lugar para os anónimos nas fontes do cristianismo. Esta condição pode não ser a meta do discipulado de Jesus, mas não será, só por isso, a sua antítese. Um cristianismo fiel às suas origens não o poderá esquecer.