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Venezuela: no meio do caos, há sempre alguém que faz a diferença
Um ‘chef’ 5 estrelas
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A Venezuela vive, muito provavelmente, a pior crise da sua história. Morre-se à fome neste país que já foi invejado pelas suas riquezas, pelo nível de vida das suas populações. Faltam bens de primeira necessidade, a inflação é galopante. O futuro incerto. No meio deste caos, há histórias de pessoas que não se resignam, de pessoas que dão o melhor de si em favor dos mais necessitados. É o caso de Tony Pereira, um cozinheiro de 51 anos de idade.

 

É indisfarçável a crise profunda em que se encontra a Venezuela. Principalmente desde 2013, quando Nicolás Maduro assumiu as rédeas do poder, que o país tem vindo a mergulhar numa situação insustentável. Há fome na Venezuela. As lojas estão vazias. Muitas cidades ficam sem energia durante várias horas e esses apagões agravam ainda mais o quotidiano já profundamente fragilizado em que vivem os Venezuelanos. Em Outubro, o Governo de Maduro actualizou o salário mínimo. Passou a ser de 300 mil bolívares soberanos. Parece muito dinheiro. É quase nada, apenas cerca de 17 euros por mês. E que importa o dinheiro quando as prateleiras das lojas estão quase sempre vazias?  Os bens alimentares passaram a valer quase uma fortuna. Um litro de leite custa 38 mil bolívares. Um quilo de arroz, 21 mil. Uma dúzia de ovos são 35 mil bolívares. E se a situação está assim no que diz respeito à comida, na área da saúde, dos medicamentos, ainda é pior. Há relatos, quase diários, de pessoas que não sobrevivem por falta de medicação básica. A Venezuela, que já foi um dos países mais ricos do continente americano, atravessa uma crise profunda sem fim à vista. As consequências desta crise não são ainda mais alarmantes porque a Igreja tem lançado inúmeras iniciativas de solidariedade, que vão mitigando a fome e as necessidades das populações mais carenciadas.

 

Exemplo de solidariedade

Tony Pereira tem 51 anos e é cozinheiro. Na verdade, é mais do que cozinheiro. É um verdadeiro ‘chef’. Formado em várias academias gastronómicas, tem no seu vasto currículo a passagem por restaurantes de renome quando a Venezuela era ainda um país com uma situação económica regular. Agora trabalha na empresa portuguesa Teixeira Duarte, mas é ainda de volta dos tachos e panelas que mais gosta de estar. E é de volta dos tachos e panelas que consegue ser um exemplo de solidariedade nos tempos negros que se vivem na Venezuela. Entroncado, vestindo sempre uma jaleca branca que o identifica como cozinheiro, Tony faz questão de usar uma pequena cruz ao pescoço. E aí está representada toda a sua identidade. Um ‘chef’ cristão ao serviço dos outros. O seu dia começa cedo, muito cedo. Antes do trabalho está sempre o voluntariado. Às 7 da manhã, apresenta-se na Teixeira Duarte. Mas às 4 da manhã, ainda de noite, sai de casa, pega na sua velhinha mota a caminho da Paróquia de San Sebastian, em Maiquetía, no município de Vargas, perto da capital, a cidade de Caracas. Depois de estacionar a moto, entra na igreja, ajoelha-se junto ao Santíssimo Sacramento, agradece o dom da vida e vai para a cozinha. É sempre dos primeiros a chegar. Por isso, é ele que acende o fogão e começa a preparar duas enormes panelas de latão. O que aprendeu como cozinheiro revela-se ali algo de providencial. Com a falta crónica de bens alimentares, Tony usa a imaginação para transformar o pouco em muito, a falta de condimentos em sabor, as panelas vazias em refeições para dezenas e dezenas de pessoas.

 

Fazer contas de cabeça

Às vezes, só mesmo a imaginação consegue fazer vislumbrar novas receitas com os mesmos condimentos, dia após dia. Hoje, há frango e arroz. Como ontem… Tony olha em volta e faz contas de cabeça: “dez quilos de arroz e quatro galinhas…” Depois pensa nas cerca de 150 pessoas que vão aparecer ali, na paróquia, à hora de almoço. Ele terá de conseguir o quase milagre de distribuir um frango por 37 pessoas… Nada que esmoreça a sua força de vontade. Afinal, para muitos, essa refeição será tudo o que vão comer durante todo o dia. Tony não está sozinho nesta cadeia de solidariedade que nasceu na Paróquia de San Sebastian. O Padre Martin faz questão de receber à porta todos os que vão almoçar. E cumprimenta-os. Conhece quase todos. Os seus nomes, as suas histórias, as suas lágrimas. Um deles é Filipe, tem 11 anos. “Todos os dias ele vem desde o alto da colina, empurrando o pai numa cadeira de rodas. Depois sobe a colina novamente; pode imaginar como isso é difícil para uma criança?” Naquele dia, veio sozinho. O pai, com febre, ficou em casa. “Posso levar comida para ele numa tigela?” – pergunta o rapaz. O padre responde logo: “Primeiro, come, depois prepararemos algo para ele”. Tony também conhece muitos dos que vão almoçar à paróquia. E também conhece a história de Filipe. “É impressionante ver como ele cuida do pai doente”.

 

Gota de amor

Além dos almoços, Tony Pereira prepara também refeições que são distribuídas aos fins-de-semana nas zonas mais pobres da cidade, verdadeiros bairros-de-lata. Bolos de milho, sopa de lentilhas, o que houver, o que a generosidade de uns permite transformar em alimentos para os mais necessitados. Na entrada da cozinha na Paróquia de San Sebastian, um cartaz pede a ajuda de todos para esta cozinha solidária. Baptizaram esta iniciativa de “gota de amor”. Todos somos chamados a ajudar. De facto, uma simples gota de amor transforma tudo, revela-se no ingrediente mais poderoso, faz verdadeiros milagres. A solidariedade é assim: graças a pessoas que não se resignam, que dão o melhor de si em favor dos mais necessitados, tudo é possível. Tony Pereira é uma dessas pessoas. Parece ser apenas um cozinheiro mas, na verdade, é um ‘chef’ cinco estrelas!

texto por Paulo Aido, Fundação Ajuda à Igreja que Sofre
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