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Guilherme d’Oliveira Martins
S. Bartolomeu dos Mártires, O.P.
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A canonização de Frei Bartolomeu dos Mártires, da Ordem dos Pregadores (1514-1590), constitui um motivo especial de júbilo e de reflexão, sobre uma das mais significativas figuras da Igreja portuguesa, com influência além-fronteiras. O seu grande biógrafo, Frei Luís de Sousa, dá-nos um testemunho notável sobre as qualidades do Arcebispo de Braga, amigo de S. Carlos Borromeo, interveniente ativo e crítico no Concílio de Trento e autor de reflexões atualíssimas sobre as reformas necessárias no seio da Igreja Católica. Um dos aspetos mais relevantes teve a ver com a formação teológica dos cristãos, que o levou a uma ação muito importante junto dos seus diocesanos, em especial no tocante aos jovens. E o Papa Francisco, ao apontar este Arcebispo de Braga como um modelo para o momento presente, faz questão em pôr a tónica na coragem reformadora e na proximidade do povo de Deus. Conta, a este último propósito, o célebre biógrafo do Santo que um dia: “ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto, ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que, ao longe, andavam pastando. Notou o arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho; e viu juntamente que, ao pé do penedo, se abria uma lapa que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o e disse-lhe que descesse abaixo, para a lapa, e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante para esperar”… No entanto, o pequeno pastor disse não poder seguir o conselho do bispo, porque se se afastasse donde estava deixava o rebanho em perigo, sob a ameaça das raposas, que poderiam matar os cordeiros. O arcebispo insistiu, mas o jovem invocou o argumento de que, em casa, o pai fora claro e veemente em pedir-lhe que guardasse bem as ovelhas sem desatenções. “Eu vigio o gado, ele me vigia a mim; mais vale sofrer a chuva”. E Frei Bartolomeu registou bem a lição, comentando para quem o acompanhava: “Este esfarrapadinho ensina-me a ser arcebispo. Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o Céu”. Ciente da importância desta lição, o Papa Francisco fez questão de salientar a necessária proximidade dos fiéis, tal qual o Bom Pastor, como marca do exemplo e da experiência.

Numa intervenção no Concílio de Trento, em 1562, Frei Bartolomeu exprimiu a opinião de que se tornava urgente uma reforma do estilo e da vida dos Cardeais. A sua frase “os ilustríssimos e reverendíssimos Cardeais hão mister de uma ilustríssima e reverendíssima reformação” ficou célebre, foi muito repetida e mantém-se atual. Com esta expressão, Frei Luís de Sousa deu ênfase à orientação do Arcebispo no sentido de fazer do exemplo uma ação que permitisse “emendar o mundo, começando por emendar a Igreja”. E assim defendeu a necessidade de um tempo de graça e de renovação. Uma das muitas outras histórias que se conta de Frei Bartolomeu dos Mártires tem a ver com os padres do Barroso, sobre os quais, o Arcebispo vivia preocupado com a sua frágil formação, desamparo e com a necessidade de serem acompanhados nas suas dificuldades concretas, à semelhança de questões atuais recentemente levantadas no Sínodo da Amazónia, afirmando designadamente: “a castidade não é da essência do estado sacerdotal, mas de conveniência”.

Bartolomeu Fernandes, nascido em Lisboa e batizado na freguesia dos Mártires, daí o sobrenome porque ficou conhecido, foi celebrado em vida, pela qualidade da sua reflexão teológica e pela ação pastoral, como “arcebispo santo” e “pai dos pobres e doentes” – o que levou o Bispo de Bragança-Miranda D. José Cordeiro a falar de um “perfil de bispo ideal”. Para o dominicano, bispos e clérigos eram apenas administradores dos bens da Igreja, que estavam destinados a evangelizar e a socorrer os pobres. E Frei Bartolomeu dava o exemplo; a austeridade de vida era a sua regra, a ponto de outros colegas lhe pedirem, sem sucesso, que refreasse o seu rigor. Em casa ele era o estranho, o menos importante, e os pobres os verdadeiros e naturais senhores. Nem sempre foi compreendido, designadamente na sua crítica aos métodos inquisitoriais, em relação aos cristãos-novos, antecipando muitas das ideias do Padre António Vieira, apresentando uma perspetiva pioneira de salvaguarda do respeito mútuo baseado na dignidade da pessoa humana. No momento da canonização de S. Bartolomeu dos Mártires, merece ainda referência Frei Raul Rolo (1922-2004), que se empenhou ativamente para que se conhecesse melhor a vida e o exemplo do novo santo, de modo a que não continuasse esquecido, apesar das suas excecionais qualidades. A coragem e a determinação do Papa Francisco merecem o nosso reconhecimento. Trata-se de um apelo sério em nome do exigente exemplo do grande prelado português.