Entrevistas |
Padre Alberto Mendes, mestre em Cuidados Paliativos pela Universidade Católica Portuguesa
“Nós devemos matar o sofrimento e não a pessoa”
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O padre Alberto Mendes, da Ordem Hospitaleira de São João de Deus, refere ser necessário, apesar de “difícil”, mudar a mentalidade da sociedade para se “matar o sofrimento e não a pessoa”. Em entrevista ao Jornal VOZ DA VERDADE, este sacerdote religioso, mestre em Cuidados Paliativos, reclama por uma maior rapidez na resposta por uma vaga ou por apoio domiciliário, e sublinha que, nesta área, nunca se baixam os braços. “Em cuidados paliativos, somos proibidos de dizer ‘não há nada a fazer’”.

 

Na última Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa, o presidente, D. Manuel Clemente, sublinhou que os cuidados paliativos são “o único caminho realmente humano e humanizador”. Para si, que dedicou uma tese de mestrado ao tema, o que falta concretizar para que possa existir, em Portugal, uma “sociedade paliativa” que privilegie a cultura da vida?

Eu diria antes uma “sociedade dos cuidados”. Necessitamos de mais formação, de mudar um bocado a mentalidade, sobretudo agora com a discussão da eutanásia. A doutora Isabel Galriça Neto dizia que é uma pena que estejamos a discutir a forma de acabar com a pessoa e não com o sofrimento. Nós devemos matar o sofrimento e não a pessoa. Andamos ao contrário e devíamos lutar para que isso acontecesse, mas não é fácil. Sabemos que existem custos, organização, uma política por trás que temos de ter em atenção.

Eu tenho uma imagem da minha mãe, de quando eu era pequeno. Lá, na aldeia, onde vivíamos, quando ela tinha dor de ouvidos ou de dentes era capaz de ‘subir paredes’, com muitas dores, e dizer para a matarem porque não conseguia aguentar mais aquilo. O hospital estava longe e, para quem vivia na aldeia, tudo isto era pior... De facto, ela estava a pedir para acabarem com a dor que tinha. Por vezes, confundimos isso. Se nós combatermos o sofrimento e a dor da pessoa, a pessoa muda mesmo de opinião. O cuidado do outro deve ser o principal – devemos começar por aí.

 

Identifica alguma medida concreta que pudesse ser implementada, a curto prazo, para ajudar no cuidado pelo outro?

Sim. Nós, que temos formação em Cuidados Paliativos, somos regularmente acusados de ser uma elite onde estamos todos a batalhar no mesmo, mas não é assim... Tivemos a formação e descobrimos que uma solução para as pessoas que estão em sofrimento passa por um maior investimento, que permita acelerar o processo dos doentes que esperam por uma vaga ou por apoio domiciliário. As pessoas estão em casa e a espera demora muito tempo. Quando a resposta chega, a pessoa já está farta de sofrer e desesperada porque se levou muito tempo a chegar.

 

No seu livro ‘Cuidados Paliativos – Diagnóstico e Intervenção espiritual’ foca a dimensão espiritual do doente. Como explica a importância que a assistência espiritual pode desempenhar para um doente em fim de vida?

É muito importante. Nós vemos a pessoa, sempre, de uma forma global. Diz-se, na Ordem de São João de Deus, seguindo a forma holística, que devemos cuidar do doente, e que o doente são todas as vertentes: físico, psicológico, social, espiritual, relacional. A pessoa é um todo, uma história, uma biografia que temos que cuidar e não é apenas um detalhe. Nos cuidados paliativos, vemos a pessoa toda. A parte espiritual também está aí e não tem a ver só com a parte religiosa. Pode ter ou não. No estágio que eu tive, durante o mestrado, vi que, muitas vezes, as pessoas não procuravam a parte religiosa, mas mais a parte espiritual: o sentido da vida, de estar bem consigo mesma. Nem sempre tinham descoberto essa parte religiosa... Mas, algumas, chegavam lá depois.

O livro fala de diagnóstico e intervenção espiritual. Tal como o psicólogo ou médico fazem o diagnóstico, também nós o devemos fazer. Para quê tudo isto? Para saber as necessidades da pessoa, quais os seus sofrimentos. Temos que saber o que a faz sofrer para intervir de acordo com isso. Por vezes, vamos dar solução a um problema que não existe porque o problema é outro. Por exemplo, não posso dizer para a pessoa ir rezar o terço se não acredita em Nossa Senhora ou que tem de ir à Missa todos os dias se isso nunca foi feito por ela. O que a pessoa precisa? Precisa de companhia, de alguém que esteja ao lado dela, que a escute, como ela é, com a sua história. E depois, sim, vamos a outro plano... O diagnóstico visa buscar a necessidade maior e a parte espiritual, no fim da vida da pessoa, é muito importante, porque tem a ver com questões muito sérias da vida.

 

Recorda algum caso em que o acompanhamento espiritual foi determinante?

Lembro-me de um caso de uma pessoa, com 80 anos, já quase em fase terminal, que guardava um segredo desde os 20 anos. Durante todo esse tempo, esteve à espera do momento propício para contar. Felizmente, aconteceu. Isso fez com que ela pudesse partir mais descansada e tranquila. Isso é uma necessidade espiritual que quase não chega à parte religiosa, mas era importante que o fizesse, mesmo prestes a terminar a sua vida terrena. Para isto acontecer, é necessária uma equipa atenta.

 

Como é feito o trabalho de acompanhamento da família do doente?

Por norma, o sofrimento maior é o da família e não o do doente. Quando a pessoa está numa fase de agonia, em que não fala ou está inconsciente por um largo período, por vezes, sabemos que a família reza todos os dias por essa pessoa e não tem respostas, mas fica com muitas perguntas. Essas famílias precisam de um grande apoio espiritual, religioso, psicológico, social, relacional… A parte espiritual e religiosa pode estar mais perto dessas famílias, porque as famílias têm muitos problemas. Não é só o doente que está ali, mas, à sua volta, a vida continua, com o trabalho, o emprego, os netos, os filhos. O tempo parou, mas avança. É este o dilema de muitas famílias. Como podemos intervir com estas pessoas? Por vezes, não podemos fazer muito, mas saber que estamos ali e que podem contar connosco, é o mais importante para elas.

 

O seu livro mostra que “o sofrimento espiritual é o maior causador de sofrimento na fase final da vida”. Este facto pede uma maior atenção da Igreja e uma maior presença nos cuidados paliativos?

Sim. A dor pode estar controlada fisicamente se houver os cuidados paliativos, se existir técnica suficiente e eficaz, com medicação... Mas uma coisa é a dor, outra é sofrimento, que, em cuidados paliativos, chamamos ‘dor total’ – é uma dor que ultrapassa a parte física e que pode ser social, relacional, psicológica, emocional, espiritual, religiosa... Daí que a Igreja pode ter um grande papel, através das capelanias, com os assistentes espirituais. A nossa Igreja e outras Igrejas – porque há pessoas de várias religiões e outras, até, que não têm nenhuma – devem estar atentas a essa realidade. A equipa pode estar ocupada com várias coisas, mas esta ‘medicação espiritual’ pode não estar a ser dada, até porque pode não existir ninguém para a dar e a outra parte estar mais em controlo sintomático.

Há quatro áreas importantes em cuidados paliativos e às quais temos sempre que estar atentos: o controlo sintomático, o apoio ao doente e à família, a comunicação – entre a equipa e com o doente –, e o trabalho em equipa – que é interdisciplinar e, por vezes, transdisciplinar. Estas quatro áreas são fundamentais e, se alguma delas falha, os cuidados paliativos ficam muito aquém do desejado para que sejam eficazes.

Em cuidados paliativos, somos proibidos de dizer “não há nada a fazer”! Há sempre muita coisa a fazer... Os cuidados paliativos – e nós, como Igreja – têm um grande papel de mudar esta mentalidade na sociedade. Temos sempre alguma coisa a fazer e nunca devemos desistir do outro.

 

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“Para além do eficaz controle da dor, a Unidade de Cuidados Paliativos da Clínica São João D’Ávila proporcionou-lhe excelentes cuidados médicos, de enfermagem e de higiene e um tratamento que ultrapassou em muito a gentileza: A Maria [nome fictício] foi sempre tratada com ternura.”

 

“Obrigada pelo vosso trabalho no alívio do sofrimento humano e valorização da vida! Foi ótimo aprender convosco!”

 

Mensagens de familiares de doentes que estiveram internados na Unidade de Cuidados Paliativos da Clínica São João D’Ávila

 

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“Despertar nos jovens a sensibilidade para a doença psiquiátrica”

É secretário da Ordem Hospitaleira de São João de Deus que tem por missão a atenção aos “aos doentes e aos necessitados, com preferência pelos mais pobres”. Atualmente, e até tendo em conta a sua missão na Casa de Saúde do Telhal, os doentes psiquiátricos são dos mais esquecidos?

Sim, continuam a ser as periferias. Esta é uma das periferias onde temos que chegar. Apesar de haver muitas políticas e a filosofia estar a mudar, oferecendo maior autonomia a estas pessoas, não se trata apenas de assistir, mas de reabilitar estas pessoas. Continuam a haver sempre pessoas, e cada vez mais jovens, a sofrer de doença mental ou transtornos, ansiedades, tantas coisas que vão existindo. Chegam-nos pessoas com uma necessidade tremenda de apoio psiquiátrico e psicológico. E, se calhar, não se investiu muito na prevenção.

Costumo utilizar cinco palavras para especificar qual deve ser a nossa ação: cuidar (para prevenir), curar, manter, reabilitar e paliar. São as cinco intervenções fortes que devem existir em todo o lado. Na prevenção, por exemplo, numa paróquia, e mais concretamente num grupo de jovens, se estivermos mais atentos, podemos atuar mais cedo com essa pessoa e tentar não deixar chegar às últimas consequências com uma depressão, uma doença psiquiátrica ou até ligada ao consumo de droga. Pretendemos despertar nos jovens, e não só, a sensibilidade para esta realidade. Por aí, vamos também mudando a sociedade. Por exemplo, na Casa do Telhal recebemos à volta de mil jovens por ano, de paróquias e escuteiros, em retiros e campos de férias. Tenho a certeza que quem por lá passa – até porque os próprios comentam isso – vai ver as coisas a mudarem, vai ver a pessoa na sua paróquia de uma forma diferente, já não lhe vai passar ao lado...

Era bom que cada pessoa pudesse parar um pouco para olhar à sua volta e ver que o outro pode precisar de ajuda, mesmo que, muitas vezes, não pareça. Temos que ter os olhos apontados para as periferias que estão à nossa volta – tal como nos pede o tema deste ano pastoral no Patriarcado de Lisboa – e aproximarmo-nos delas.

 

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O padre Alberto Mendes, de 46 anos, é natural de Amarante e pertence à Ordem Hospitaleira de São João de Deus, onde desempenha a função de secretário provincial. É Licenciado em Teologia e completou o Mestrado em Cuidados Paliativos, na Universidade Católica Portuguesa, tendo a respetiva tese originado o livro ‘Cuidados Paliativos – Diagnóstico e Intervenção espiritual’, publicado em 2016, pela editora Multinova. Este sacerdote é capelão da Casa de Saúde do Telhal, em Sintra, e presta também apoio na Unidade de Cuidados Paliativos da Clínica São João D’Ávila, em Lisboa.

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