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Guilherme d’Oliveira Martins
A fé começa na vida normal…
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«A fé é a coisa mais natural, ela começa na vida normal de uns com os outros. Sem essa autoconfiança a existência torna-se impossível. Ter fé, etimologicamente, é confiar. A nossa vida está completamente baseada na fé. “Fé” é uma palavra que vem do latim fides e de onde vem depois a palavra confiar. (…) O bebé quando vem ao mundo confia que tratem dele, que lhe deem comida, que o lavem, que sorriam para ele. O mesmo acontece na relação de uns com os outros. A nossa vida está baseada na confiança e na fé. O que falta precisamente em Portugal é confiança e fé. Outra palavra relacionada com fé é “crer” “acreditar”. Os mercados não acreditam muito em nós. O que falta é crédito, crer. Quando a fé é frustrada, começa a revolta. A violência, a destruição. A fé no sentido religioso é a entrega confiada ao mistério de Deus, Fundamento último e o Sentido final da existência enquanto salvação e plenitude, confiar que se não entregue ao acaso e que a nossa vida está assente em Deus e tem valor para Ele que a reconhece e lhe dá plenitude». Esta passagem está no livro que acaba de ser publicado “Conversas com Anselmo Borges – A Vida, as Religiões, Deus” (Gradiva, 2019) e merece uma atenção especial. De facto, exige-se-nos um cuidado efetivo relativamente à compreensão de como a relação de confiança é a chave na humanidade e nas sociedades humanas.

Temos de compreender os limites, a dúvida, a incerteza, a imprevisibilidade, mas sobretudo a imperfeição. Sendo imperfeitos, mas perfectíveis, importa entender a ligação íntima entre fé e razão. A vontade depende da ligação entre os dois elementos. Não somos autossuficientes e como afirmou Karl Popper nunca saberemos o suficiente para ser intolerantes. De facto, o respeito mútuo obriga a pormo-nos no lugar do outro, a conhecer melhor quem dialoga connosco, para que não nos fiquemos por uma conversa de surdos, que é o que mais acontece quando se pretende que haja um debate ou uma troca de ideias sobre questões fundamentais da nossa vida. Só pode haver diálogo entre culturas, se conhecermos a cultura dos outros. Do mesmo modo, é indispensável termos tempo e possibilidades de ponderar e refletir, para que as decisões sejam justas e verdadeiras. Também só pode haver reflexão entre religiões, se conhecermos o que pensa que pensa connosco. Infelizmente, há muita superficialidade na abordagem das questões realmente importantes. Entre os cristãos, tantas vezes encontramos um profundo desconhecimento dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. Dir-se-ia que se prefere a comodidade das ideias vagas ou das tradições vazias que esquecem que o sábado se fez para as pessoas e não as pessoas para o sábado. Eis por que razão o tema da Fé tem de ser visto à luz da confiança, da exigência e da entrega confiada ao mistério de Deus, enquanto salvação e plenitude que se não entregue ao acaso ou ao comodismo.

O Papa Francisco quis assinalar o Advento e o Natal de 2019 com uma referência especial ao Presépio. O tema liga-se exatamente ao que vimos dizendo. Precisamos de ir ao fundo das questões e compreender como poderemos ser melhores, designadamente no entendimento do outro e do diferente. «A mensagem que surge do presépio é clara: não podemos deixar-nos iludir pela riqueza e por tantas propostas efémeras de felicidade”. Mais do que as aparências, urge considerar a importância da vida e dos valores éticos vividos como experiência e exemplo. Nascendo no presépio, Deus dá início à única verdadeira revolução: a revolução do amor e da ternura, através da “força meiga” de um menino. “Do Presépio, Jesus proclama o apelo à partilha com os últimos, como estrada para um mundo mais humano e fraterno, onde ninguém seja excluído e marginalizado.” E se todos devem ser considerados na sua humanidade, é indispensável, que possamos sair do conforto das ideias feitas e formalismos. Deste modo, o presépio torna-se para os fiéis um convite para que nos tornemos discípulos de Cristo, e para refletir sobre a responsabilidade de evangelizar e de ser portador da Boa Nova com ações concretas de misericórdia. Assim, para o Papa Francisco, o importante, não é o modo de fazer - “o que conta é que fale à nossa vida”. É importante que o presépio constitua um apelo sério e permanente, a que possamos sair da nossa redoma, a que saibamos ser uma Igreja a caminho, com a capacidade de ver os sinais que nos são apresentados para que as Bem-aventuranças possam ser o nosso programa de vida. Lembremo-nos, afinal, do que nos foi lembrado pelo Papa na recente visita ao Japão: “Pensemos nos ‘cristãos escondidos’ da região de Nagasáqui, que mantiveram a fé durante várias gerações graças ao batismo, à oração e à catequese. Autênticas Igrejas domésticas que resplandeciam nesta terra, talvez sem o saberem, como espelhos da Família de Nazaré”.