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Guilherme d’Oliveira Martins
Lembrar Edith Stein…
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Começo por lembrar sentidamente a partida de Frei Mateus Cardoso Peres, O.P. (1933-2020), personalidade fascinante com uma rica obra de apostolado e de reflexão. Conheci-o bem e tenho pela sua vida e ação uma grande estima. O grupo de que fez parte dos “católicos inconformistas” integrou alguns dos meus grandes amigos, como António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva e João Bénard da Costa – num conjunto mais vasto de quem sempre estive próximo, entre os quais se contam Pedro Tamen, Maria Isabel Bénard da Costa, Nuno Bragança, Ruy Belo, M.S. Lourenço, Manuel Lucena, Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Falo da Aventura da Morais, de “O Tempo e o Modo”, da revista “Concilium”, do Centro Cultural de Cinema (CCC) e do Centro Nacional de Cultura. Houve trajetórias diferenciadas, mas também muitos frutos com efeitos de longo prazo, que não podemos esquecer… Se há quem continue a resistir ao entendimento sobre a importância dos sinais dos tempos, a verdade é que continua atual esse combate sereno e persistente não por uma Igreja triunfante, mas por um caminho cristão de respeito mútuo e de dignidade. Frei Mateus era um intelectual rigoroso mas estimulante, avesso às simplificações. Com ele sabíamos que a dignidade da pessoa humana exige procura, e que o diálogo só vale a pena se for trabalhoso… Sempre nos ensinou, por isso, que a teologia obriga a conhecimento e a ir além da superficialidade – o “aggiornamento” obrigou a tempo e a reflexão. Daí a importância dos célebres colóquios da revista “Conciluim”: refletindo com teólogos como Schillebeeckx, Chenu, Congar ou Balthasar… Frei Mateus conhecia bem as audácias de S. Tomás de Aquino, distantes de qualquer lógica conformista. E quando o lembramos temos de apelar a uma atitude saudavelmente livre e aberta…

Há dias, em ambiente académico, em diálogo com o Professor Padre Javier Sancho Fermin, invocámos a tradição carmelita de Santa Teresa de Jesus e de S. João da Cruz, a propósito de Edith Stein (1891-1942), proclamada pelo Papa S. João Paulo II, uma das padroeiras da Europa. Filósofa, discípula de Edmund Husserl e de Max Scheler, teóloga, convertida ao catolicismo, religiosa morta no Campo de Concentração de Auschwitz – o seu percurso é extremamente rico e permite-nos compreender a um tempo a reflexão e o compromisso. Edith Stein exigiu de si e em si a compreensão da eminente dignidade humana. Por isso, quis partilhar as agruras e o sofrimento da Primeira Guerra Mundial como enfermeira da Cruz Vermelha, procurando a singularidade da pessoa humana no respeito mútuo, na entreajuda e no compromisso. No fundo, desejar conhecer a verdade, isto é, captar a essência do Espírito, e realizar o bem, obriga a proceder sempre em coerência com os valores éticos, o bom, o belo, o justo e o verdadeiro. A singularidade constrói-se em relação, na troca, na não indiferença. Pessoa vem de máscara, e corresponde ao modo de identificar a personagem no teatro – e de garantir a síntese fecunda corpo, alma e espírito. Assim, Edith Stein estudou e aprofundou a ideia de “empatia”, como capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. O amor, agapé, pressupõe partilha e entrega…. O outro é a outra metade de nós. Não podemos viver sós, distantes. Nestes tempos de confinamento, precisamos de recuperar a ligação aos outros. Como disse Paul Ricoeur, a solidariedade faz-se com sócios e a caridade com próximos. Pessoa e comunidade, singularidade e bem comum, ligam-se naturalmente. Daí a analogia entre a Alma humana e o Castelo, tão repetida por Stein, seguindo as lições de Teresa de Ávila. A interioridade não pode ater-se ao isolamento e ao fechamento. Somos chamados a sair de nós, para nos compreendermos. O ser livre e espiritual torna-se próximo. E só pode haver proximidade, se nos dermos e recebermos. Santa Teresa Benedita da Cruz reúne, deste modo no seu exemplo o ser e o agir, a dignidade e a coerência, a vontade e o compromisso. Para a filósofa, contruímos o nosso mundo, num certo sentido. Mas temos de considerar os dois lados do conhecer – as coisas e o modo de pensar. Idealismo e realismo cruzam-se. Mas só a minha própria existência é absoluta. É absoluta para mim mas não para outro ser humano. Por isso, o meu ser não é “absoluto” num sentido pleno. Transcendo-me a mim, em dois sentidos, vou além de mim no sentido das coisas que conheço, e vou além delas e de mim no sentido de um “princípio” que fundamenta o ser tanto das coisas como do meu próprio ser. Em suma, sou absoluto em comparação com as coisas e os sujeitos que conheço, mas não em comparação com Deus. Na minha vida consciente e livre transcendo-me até à objetividade do mundo, para além da minha subjetividade e no sentido quer da objetividade do mundo quer da subjetividade pessoal. E ouvimos S. Paulo: “Ninguém dentre vós vive para si mesmo ou morre para si mesmo. Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos, se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor” (Rom, 14, 7-8).