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Pedro Vaz Patto
Em paz com a criação e com o Criador
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Neste ano especialmente dedicado ao estudo e à vivência da encíclica Laudato Sì, têm sido várias as ocasiões em que o Papa Francisco tem salientado a fundamentação bíblica do cuidado com a “casa comum”, a qual constitui a motivação mais forte e profunda da ação dos cristãos nesse âmbito. Na verdade, essa ação não deriva, simplesmente, da adesão a uma moda ou à cultura hoje dominante, ou de uma opção política, mas tem uma motivação que radica na própria fé cristã.

Assim, o Papa Francisco tem afirmado que uma nova relação do ser humano com a natureza supõe uma nova relação do ser humano com Deus e que «não é possível viver em harmonia com a criação sem estar em paz com o Criador, fonte e origem de todas as coisas» (mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, deste ano de 2020). Aludindo ao relato do Génesis, tem salientado como a criação não é fruto do caos ou do acaso, mas reflete uma ordem e uma harmonia («Deus viu que era bom…») que são reflexo da sabedoria, da bondade e da beleza divinas e que fazem dela um dom precioso que não deve, por isso, ser destruído.

É verdade que o relato do Génesis, que fala do cuidado e da proteção do “jardim”, também fala na missão humana de “dominar a Terra”. Esta frase já serviu de motivo para responsabilizar o pensamento judaico-cristão, matriz da civilização ocidental, pela degradação da natureza, e não só pelo progresso técnico, que caracterizam essa civilização. Podemos, porém, atribuir essa responsabilidade não ao antropocentrismo bíblico, mas, antes, ao antropocentrismo moderno, que, sob o pretexto de uma pretensa emancipação do ser humano, coloca este no lugar de Deus, desvinculado de leis por Ele, direta ou indirectamente, ditadas.

Francisco tem sublinhado que o “domínio” a que se refere o Génesis não é um “cheque em branco” para o arbítrio, nem o de um déspota que não presta contas a ninguém, nem ao próprio Deus. É o de um administrador prudente, que deve prestar essas contas. Os pecados do egoísmo e da ganância desvirtuam esse mandato e fazem do ser humano um predador. Esses pecados levam à destruição da harmonia da criação, tal como levam à exploração dos seres humanos mais frágeis.

São João Paulo II, num seu discurso de 17 de janeiro de 2001 (e também na encíclica Laborem exercens, sobre o trabalho humano), a propósito desse “domínio” afirmou que o ser humano (criado “à imagem e semelhança de Deus”) deve agir como delegado (ou “ministro”) do próprio Deus, e que o trabalho humano deve ser encarado como uma continuação da obra da criação. O trabalho humano deve, por isso, desenvolver a harmonia inscrita na criação, e não destruí-la.

Nesta visão, a criação não é algo de perfeito, acabado, estático e intocável (como se fosse divinizada, numa visão panteísta). Ao ser humano cabe combater o que ela possa ter de hostil (quando é fonte de doenças) e aperfeiçoá-la desenvolvendo as suas potencialidades. Não se trata, por isso, de negar a técnica e o progresso, nem de recuar a épocas passadas. Trata-se de colocar o progresso ao serviço do «homem todo e de todos os homens», como afirma a encíclica Populorum progressio, de São Paulo VI. Servir todos os seres humanos é atender ao destino universal dos bens da criação: estes devem beneficiar todos os seres humanos sem exceção, incluindo os das gerações futuras, e não apenas alguns. E atender a todas as dimensões do ser humano (incluindo as espirituais) significa considerar que a criação é um dom de Deus não apenas como recurso económico, na sua beleza e na riqueza da sua variedade.