Artigos |
António Bagão Félix
Que Natal?
<<
1/
>>
Imagem

Este ano, com a ameaçadora pandemia e sucessivos estados de emergência, que Natal podemos ter?

Nesta questão, como em outras, há previsões radicais, como a de se dizer que, em 2020, não há Natal.

Haverá sempre Natal cristão, simbolizando o aniversário de Jesus Cristo. O Natal que traz sempre à memória a mensagem evangélica “Anuncio-vos uma grande alegria”, recebida, em primeiro lugar, pelos pastores, os mais pobres entre os pobres. Um Natal que só precisa de coração, espírito e fé. Um Natal que celebra a maior prenda que se pode ter ao alcance: a Vida.

Por isso, o Advento natalício não é tanto chegar, mas ir ao encontro. Não é apenas uma data, mas um tempo. Não é apenas ter. É sobretudo ser. Não é apenas consumismo. É evitar a consumição. Não é apenas ansiedade. É serenidade. Não é apenas a luz dos néones. É luz dentro de nós.

Neste ano tão estranho, o essencial do Natal permanece. Mas, mudam as circunstâncias. Com renúncias e imposições.

Com a hiperbolização da sociedade de consumo, o Natal entrou na Economia e a Economia moldou o Natal. Natal vivido como um tempo de fora, que nos comanda e não um tempo de dentro, que nós comandamos. Acontece que a pandemia vai ter como consequência uma diminuição da procura (e também da oferta) de bens e serviços associados ao Natal. Será um Natal mais desigual e mais fragmentado do ponto de vista familiar e geracional. Onde a solidão não querida e a saudade não antecipada doem até às profundezas da alma.

Se olharmos para o que tem sido o “Natal das compras”, talvez possamos, neste ano tão insolitamente diferente, ter a oportunidade de reflectir sobre os excessos desta febre consumista. Certamente, vai haver menos pessoas munidas de cábulas a mergulhar na compulsiva prática de comprar coisas e coisas, destilando litros de ansiedade, em que o prazer de dar cedeu lugar à estopada de ter de dar. O oferecer, como acto que vale por si só, esfumou-se na conta corrente que confronta o que se dá com o que se recebe, medido mais em euros do que em valores de vida e de relação. Dar só é bom se for natural. Dar só vale a pena se a pessoa que recebe está antes da prenda que se entrega. Dar só faz sentido se o que se oferece for uma ponte entre pessoas, uma expressão de um sólido sentimento de união, estima ou consideração.

O Natal também mudou muito neste século, movido pelas poderosas e novas tecnologias. Natais impositivos, que passam sem se passar. Tratamentos de massa, cumprimentos de circunstância, praga de votos festivos mecanicamente enviados e extraídos de uma lista de amigos, indiferentes, desconhecidos e desconsiderados, com etiquetas de endereço automáticas, eis tudo o que o Natal não deve ser.

O certo é que, com pandemia ou sem pandemia, é sempre possível vivenciar o Natal – religioso ou apenas festivo – centrado na esperança de um mundo melhor e na renovação da magia do espírito de criança, que em nós permanece. Por isso me deliciei com a pergunta que a minha neta mais nova (com 5 anos) fez à Mãe: “este ano, o Pai Natal também vai ter uma máscara, como a nossa?


(O texto não segue o AO, por vontade expressa do autor)